O longa metragem de estreia de Vera Chytilová, um dos principais nomes da nouvelle vague tcheca, já deixa registrado seu talento selvagem para a quebra das convenções, assim como seu espírito anárquico que busca, incessantemente, a inovação formal articulada com a crítica social. Uma cineasta que, desde seu primeiro longa, busca dialogar com a tradição ao buscar rompe-la.
É assim que acompanhamos a vida de uma das ginastas de maior sucesso da Tchecoslováquia, num estilo documental que, quando Chytilová deseja, transforma-se em poesia. A diretora extrai, do registro da realidade da ginasta, toda a beleza poética dos gestos ensejados pela atleta, através de planos detalhes e enquadramentos que prestigiam os milimétricamente perfeitos movimentos executados. Há passagens que, ao congelar o quadro enquanto Eva realiza um salto, a colocam voando sem os limites impostos pela gravidade. Há um momento sublime onde a cineasta registra as piruetas e danças da ginasta com a câmera invertida, de cabeça pra baixo, como se Eva estivesse dançando no teto, mais uma vez livre das amarras impostas pela realidade física, realidade esta que é sempre o pressuposto de qualquer tipo de registro documental. E num instante de pura beleza técnica e ousadia formal, Chytilová vira a câmera para a posição normal, junto com o mortal realizado pela ginasta, como se o mundo estivesse girando de acordo com os movimentos realizados pela artista em atividade. É assim que Chytlova se utiliza do cinema verité para criar um cinema único, fora das barreiras erguidas pelas convenções.
Essa liberdade da diretora, assim como o poder de moldar o mundo da ginasta, são contrastados pela aparente realidade bem menos livre e empoderada da dona de casa Vera, a outra protagonista da obra. Vera, nos dois primeiros terços da obra, se divide entre os afazeres domésticos, a desatenção do marido e o cuidado com o filho. Vera é o contraponto de Eva, a principio: a mulher típica da sociedade tcheca da década de 1960, recatada e do lar.
Vera parece submersa nas atividades numerosas e tediosas do dia a dia da mulher tcheca. Parece desprovida de agência, submetida aos desígnios de.uma sociedade machista e patriarcal, que relega a mulher ao papel de cuidadora da casa e da família. Essa realidade opressiva e de marasmo da dona de casa é trabalhada durante toda a obra, sempre contrastando com a vida de exceção da grande atleta Eva. Numa montagem que intercala o dia a dia das duas protagonistas, numa espécie de continuidade temporal que promove diversas assimilações por paralelismo, vemos Eva saindo para comprar um sapato, enquanto Vera se vê obrigada a economizar, já que o marido assim o quis - enquanto Eva dispõe do dinheiro como mulher autônoma, Vera se vê dependente do marido, único membro do casal com acesso ao salário. E são muitas as assimilações promovidas pela montagem do filme: enquanto Eva realiza acrobacias e piruetas como parte de um trabalho socialmente admirável e edificante, Vera realiza as acrobacias e piruetas necessárias para se manter em ordem o ambiente doméstico, realizando um trabalho socialmente invisibilizado e menosprezado. E por aí em diante.
Porém, quando achamos que as associações estão delineadas, vemos Vera mantendo relações amorosos extraconjugais, exercendo assim seu poder de agência, como Eva. Vemos Vera dona de si e do seu destino, exercendo sua liberdade através do controle de seu corpo e desejos. Vera, ao contrário do que imaginávamos, é também uma mulher dona de suas escolhas, mesmo que oprimida pelos rituais de uma sociedade machista.
E não podia ser diferente, já que estamos falando de um filme dirigido por Vera Chytilová, uma das diretoras mais radicais e feministas do século XX.
Algo Diferente
Direção e Roteiro: Vera Chytilová
Tchecoslováquia - 1963 - 1h 30min
Avaliação:
4/5
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