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Foto do escritorJoão Marcos Albuquerque

As Diferenças na Construção do Estranhamento em Dente Canino e Pobres Criaturas

Atualizado: 4 de mar.

Faz parte do projeto cinematográfico de Yorgos Lanthimos, desde seus primeiros filmes, a crítica e a subversão das grandes narrativas – as narrativas hegemônicas que estruturam nossa sociedade: patriarcado, machismo, racionalismo, individualismo, família nuclear, capitalismo - incluindo aqui as grandes narrativas de ordem cinematográfica, aquelas que imputam normas de boa conduta ao fazer cinema.

 

Seu processo artístico consiste em demolir as bases que sustentam estas grandes narrativas, por meio de uma mise en scène que busca exacerbar o estranhamento. Lanthimos atinge o estranhamento, principalmente, ao utilizar diversos recursos estilísticos que vão na contramão da convenção cinematográfica. Como consequência, ele acaba por criar mundos sensíveis onde o estranho é normalizado, e assim destaca, como numa fratura exposta, o que há de mais abjeto em nosso mundo familiar – esse é o efeito maior do estranhamento.

 

O texto a seguir pretende demonstrar uma mudança, por parte de Lanthimos, na sua criação do estranhamento em Pobres Criaturas. Para tanto, farei um paralelo entre Pobres Criaturas, seu oitavo longa-metragem e Dente Canino, seu terceiro. A comparação nos ajudará a entender as diferenças entre as obras, ressaltando as mudanças estéticas, formais e narrativas percebidas em Pobres Criaturas, e que definem um outro caminho seguido pelo diretor (caminho este que ele já vem percorrendo desde, no mínimo, seu sétimo longa-metragem, A Favorita). Mas antes de entrarmos em Pobres Criaturas, acho relevante situar o cineasta em seu contexto histórico original, a Crise Grega – circunstâncias que moldaram seu estilo e que, agora vivendo nos EUA, perderam força para as relações sociais do novo país em que reside. A mudança no cinema de Yorgos também está pautada pela mudança de cenário político-social.

 

A Estranha Onda Grega e Dente Canino

 

Yorgos é filho da Crise Grega, período histórico que irrompe na Grécia em 2008. Este período é identificado como uma depressão econômica profunda do estado grego, onde a narrativa oficial promulgava medidas de austeridade fiscal como solução para o problema. Estas medidas, como bem sabemos, fazem parte da ideologia neoliberal, e buscam arrochar os recursos dos bens públicos (saúde, educação etc.) para financiar o pagamento dos juros da dívida pública (cujos credores são, majoritariamente, bancos, fundos e empresas).

 

Diversos setores da sociedade (classe artística, intelectualidade, estudantes etc.), já conhecendo o credo neoliberal, não engoliram a narrativa oficial, e propuseram uma narrativa alternativa: o boicote ao pagamento da dívida. A ideia central por trás deste argumento é a de que todas as crises econômicas são, em última instância, frutos de crises políticas, já que se trata, sempre, das relações de poder em jogo (quem deve ser favorecido e quem não deve).

 

A classe artística, neste período, constrói, portanto, um projeto comum de ataque à narrativa oficial para desmistificar a ideologia dominante (onde a crise é tratada inteiramente em termos econômicos, mistificando assim os verdadeiros fundamentos políticos da questão). Este trabalho será levado a cabo, no cinema, pelos cineastas gregos que ficaram conhecidos sob a alcunha da Estranha Onda Grega.

 

A Estranha Onda Grega é composta por diversos cineastas jovens que partem para a realização deste projeto, e em suas obras identificam uma aliança primeva entre o patriarcado, o machismo e a heterocisnormatividade com a formação do Estado Capitalista Grego. Logo, o cinema realizado pela Estranha Onda Grega tem um eixo temático fortemente apoiado na filosofia Queer, para assim combater e subverter os alicerces da sociedade grega atual. O Queer se manifesta na quebra das normatizações, no desafio ao status quo, às convenções sociais, em suma, às narrativas estruturantes que pretendem criar uma sociedade homogênea e coesa, enquanto marginaliza e oprime as minorias que não se conformam ao seu discurso. O Queer é o estranho, aquele que não se adequa as normas.

 

Em Dente Canino, o primeiro choque causado pelo estranhamento vem do vocabulário peculiar da família, onde os significantes têm outros significados que não aqueles com os quais estamos habituados. As palavras mudam de sentido dentro do universo próprio daquela família. A palavra “cachorro” significa “armário”, por exemplo, e a espécie felina é tida como a maior ameaça possível dentro do reino da natureza. O controle dos significantes e dos significados por parte do patriarca faz com que ele seja o grande criador da cosmologia particular desta família, lembrando que sua família não tem acesso ao mundo exterior além-muros, somente ele. Logo, são as histórias que o pai narra, com os significados que ele impõe, que compõem as mitologias daquele espaço, modelando as subjetividades a ele impostas. É desta forma alegórica que Yorgos Lanthimos identifica a figura do patriarca com o Estado grego, por exemplo – o Estado como detentor desse imenso poder para a legitimação e criação de narrativas. E aqui vale sublinhar o caráter alegórico das primeiras obras de Yorgos, característica importante para se trabalhar o estranhamento, e que ele abandona em seus últimos filmes.

 

Yorgos, ao criticar e subverter as grandes narrativas, acaba por desvelar o caráter mitológico de cada uma delas. A liberdade começa quando entendemos a natureza fictícia do que se impõe como verdade. No cinema de Yorgos, isso se apresenta, por exemplo, no combate entre a ética e a moral. O incesto em Dente Canino é uma política instituída pelo pai para proteger o filho dos perigos do mundo exterior (o pai escolhe uma de suas filhas para satisfazer as necessidades sexuais de seu filho). Mas é o próprio incesto que libera a força revolucionária, ao provocar uma situação tão inadmissível para a filha que a faz desafiar a moral vigente. Ela ganha consciência da prisão em que vivia e planeja sua fuga. As verdades do patriarca entram em choque com as verdades do corpo e dos desejos da filha. Há em Yorgos, sempre (e isso ele não abandonou), esse duelo da ética contra a moral, ou seja, do que um acredita e sente contra o que ele é obrigado a crer e a sentir. Quando a ética finalmente se sobressai ao julgo da moral e a desafia, então o caráter fictício da narrativa dominante vem à tona.

 

Pobres Criaturas

 

Em Pobres Criaturas, Godwil (Willem Dafoe) diz que "toda sexualidade é amoral". A mensagem é clara: não há bem ou mal no que tange o sexual. O que existe é política, desejo de poder, vontade de controle sobre os outros corpos – criação de narrativas que operam a favor de determinada vontade de poder. É por isso que Bella tem essa natureza revolucionária: ela não aceita as verdades que contrariam o que seu corpo lhe diz. Como uma grande cientista – e que criança não o é? – Bella investiga o mundo e constrói seu sistema ético a partir de suas próprias experiências. A potência disruptiva e incontrolável de Bella vem dessa sua postura independente, de seu desejo de afirmar a sua narrativa perante as outras tantas que tentam a disciplinar. E Bella se guia, principalmente, pelo prazer, pelo gozo, por aquilo que acredita lhe fazer bem – experiências que podem lhe ensinar sobre a vida e sobre o bem-viver. Mas nada disso teria efeito narrativo contundente se não fossem as escolhas estéticas e estilísticas de Yorgos.

 

Para fazer um cinema que desafia as grandes narrativas, o cineasta precisa quebrar as regras do próprio fazer cinematográfico, desafiando a convenção. Toda convenção, saliento, é uma narrativa que se cristaliza como uma verdade. Para ser um cineasta de combate às grandes narrativas, é fundamental combater as narrativas que imperam no cinema. Aqui não me refiro mais à narrativa no sentido temático, de enredo ou desdobrar da trama e da história. Refiro-me as convenções da linguagem cinematográfica, dos usos das técnicas e dos estilos, da criação estética e formal. É aqui que o cinema de Yorgos causa seu maior estranhamento. Porque ele se utiliza do aparato e da linguagem cinematográfica para demolir a própria convenção cinematográfica. Mas Yorgos foi perdendo esta postura iconoclasta com o passar dos anos, com a mudança de país e de status econômico e social.

 

Em Pobres Criaturas, por ter uma verba maior do que nos seus projetos iniciais, Yorgos acaba por experimentar novas possibilidades advindas dos novos recursos tecnológicos. Ele utiliza diversas câmeras e lentes ao longo do filme, buscando o estranhamento principalmente por essa via tecnológica. Aliada a seu particular talento para composições pictóricas idiossincráticas, a tecnologia poderia trazer mais versatilidade ao diretor. É com o uso do CGI, combinado ao uso de diversas câmeras e lentes e com todo complexo de design de arte, que Yorgos cria o mundo que ele cria, encantador, sem dúvida, porém, a meu ver, mais dependente da tecnologia do que de sua própria inventividade ou ousadia. Nesse sentido, se torna um cinema mais palatável do que desestabilizador, condizente com um projeto que deve agradar aos investidores (as grandes produtoras e distribuidoras por trás do filme). O efeito estético é da ordem do belo, não do abjeto. Enfraquece-se o estranhamento, que agora é conduzido, em grande parte, pelo tecnicismo, não mais pelo experimentalismo. O estranho é o estrangeiro, é o que escapa ao nosso ordenamento de mundo. As imagens que Yorgos cria em Pobres Criaturas são, em sua maioria, belas. O belo é aquilo que já foi assimilado, que nos agrada e dá prazer estético. Estamos em território conhecido.

 

Yorgos, em seus primeiros projetos, criava mundos sensíveis manipulando com ousadia a linguagem cinematográfica, sem recair tanto sobre os demais artifícios tecnológicos. Era uma abordagem simples e crua, e por isso mesmo, focada no essencial – colocar as duas convenções em colapso, tanto a social quanto a cinematográfica. Em Dente Canino, por exemplo, Yorgos corta constantemente a cabeça dos personagens no enquadramento. Esse corte é agressivo, contraria toda e qualquer regra de conduta do enquadramento – choca pela sua desobediência e inaptidão, gerando estranhamento. Para realizar essa quebra, a tecnologia é indiferente (basta uma câmera, qualquer uma). O que vale é a inventividade e a coragem do cineasta, características intelectuais e afetivas, não científico-tecnológicas. Yorgos era um cineasta experimental, porque experimentava com a linguagem, e a tecnologia era apenas um meio para alcançar esse fim.

 

As imagens com fundo distorcido em Pobres Criaturas são fruto da lente sem profundidade. Os planos mais abertos e que muitas vezes parecem mais amplos do que 180° são também fruto da abertura da lente. O CGI dá os contornos surreais do mundo. Tudo isso gera um estranhamento domesticado, de fácil assimilação – não precisamos de tempo para nos habituar com as imagens, pelo contrário, elas vêm até nós, na maior parte das vezes, como belas e agradáveis. Acredito que isso ocorra devido a manutenção das estruturas de espaço e de tempo dentro dos moldes da convenção. O filme segue, portanto, uma estrutura clássica quanto a configuração temporal, e está em concordância com os códigos do “bom gosto” na sua construção espacial. Para ilustrar o argumento, me detenho a seguir em três pontos: a composição dos planos, a duração do plano e a montagem.

 

A composição dos planos e suas escalas: apesar de alguns ângulos e movimentos de câmera inusitados distorcerem o espaço (o que gera, sim, um estranhamento, mas comedido), respeita-se certo ordenamento convencional do quadro no que tange a composição dos corpos em sua disposição e interação com os espaços e com a câmera. Em Dente Canino, cortava-se metade da cabeça num enquadramento (como já citado acima). Em Pobres Criaturas, a deformação do espaço, quando ocorre, vem acompanhada de um efeito de estranhamento domesticado pela beleza da composição pictórica e pela harmoniosa e previsível relação dos corpos (personagens e objetos) com o espaço – a profundidade de campo, o que “deve” ser enquadrado em determinada escala de plano e o jogo do campo com o fora de campo seguem o padrão. Reduz-se o estranhamento com sua adequação aos códigos convencionados de linguagem. Destaco nesse ponto o limite claro em relação as bordas do quadro que não comportam o transbordamento comum das suas primeiras obras (com destaque para Dente Canino).   

 

Quanto a duração dos planos, o filme opera numa estrutura temporal convencional. Seguindo o tempo suficiente para compreensão do evento em questão, a duração do plano está inteiramente atrelada ao desdobramento da trama e ao nosso entendimento de seu conteúdo. Em Dente Canino, alguns planos parecem durar mais do que deveriam, não entendemos o porquê de determinado plano se estender tanto, parece haver um descompasso entre o que vemos e o que é para ser intuído como elemento da trama. Esta condução temporal nos coloca à deriva, gerando uma condição importante de distanciamento, potencializando o efeito de estranhamento. Em Pobres Criaturas, estamos sempre a par do que está ocorrendo no tocante a duração e conteúdo do plano. O uso do tempo é convencional.

 

A montagem também é convencional. Não há nenhum tipo de estranhamento advindo da montagem, pelo contrário. Entendemos o nexo lógico que encadeia um plano ao outro. As imagens se sucedem sem criar qualquer tipo de dúvida quanto a razão da sequência. Em Dente Canino, a montagem, por vezes, cria encadeamentos duvidosos, que nos fazem refletir sobre o significado do atual plano em decorrência do anterior, onde buscamos o sentido e não raro nos frustramos com as expectativas criadas (isso quando conseguimos criar alguma expectativa). Uma montagem que convida o espectador para o processo criativo, dando ao mesmo uma variedade de possibilidades interpretativas – o significante nem sempre encontra um (fácil) significado. E por isso, uma obra polissêmica, com numa abertura que convida à especulação e à alegoria. Este tipo de montagem é mais um elemento que potencializa o estranhamento, já que “estranhamos” o encadeamento dos planos, que não nos oferecem, de forma mastigada, um sentido (unívoco). Em Pobres Criaturas a montagem não abre espaço para a dúvida, não há co-criação do significado. O estranhamento se rarefaz na atmosfera da assimilação. A alegoria, que muitas vezes se torna possível por meio da liberdade criativa que a montagem sugere na sua concatenação dúbia, não tem mais espaço.

 

Um Estranhamento Comedido

 

Fazer um filme dentro dos esquemas da grande indústria cobra determinadas posturas. Entre elas estão: o (quase) abandono da experimentação cinematográfica, a conformação do tempo fílmico à convenção e o uso doMai espaço em adequação às normas do “bom gosto”, o que enfraquece o efeito de estranhamento.

 

Yorgos não é mais um cineasta grego, que vive na Grécia e que trabalha sob a alcunha da Estranha Onda Grega. Há uma mudança clara na trajetória do cineasta quanto a sua relação com o estranhamento, que busquei identificar neste texto. Sua crítica das grandes narrativas (tanto as sociais quanto as cinematográficas) está menos incisiva, mais adaptada aos parâmetros do razoável ditado pelo mercado – mais disciplinada e domesticada, e, portanto, menos subversiva.



Texto escrito por João Marcos Albuquerque

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-> O Cinema de Yorgos Lanthimos será o tema da 13ª Edição do CineCuti, que começa em Maio. A próxima edição do CineCuti é sobre o Cinema de Claire Denis, e começa no dia 12 de Março. Para mais informações e inscrições, clique aqui.

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