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Foto do escritorJoão Marcos Albuquerque

Homo Sapiens (2016) - Crítica

A Desmistificação no Antropoceno – uma crítica do filme Homo Sapiens


O termo antropoceno designa a era geológica caracterizada pelo impacto do humano na Terra - o impacto que as ações humanas geram no clima e na biodiversidade, afetando em escala geológica a vida no planeta. E se os humanos são a força central desta era, aqueles responsáveis por formatar o mundo a sua maneira, são eles também os responsáveis por trazer a ideia do fim do mundo desvinculada de qualquer misticismo, religião ou crença: o fim do mundo, no sentido de fim da vida humana, tornou-se um assunto científico, histórico, premeditado não mais por profecias, mas por cálculos, estatísticas, probabilidades. Os humanos já colocaram em extinção inúmeras espécies, e mais de 1 milhão estão, hoje, em risco de extinção. Agora, são os humanos que estão a poucos passos de concretizarem sua própria inexistência. Rumamos à destino de nossa própria obliteração.


Essa ausência da vida humana na Terra é o que preenche cada centímetro dos enormes espaços vazios, e por isso mesmo espectrais, fantasmagóricos, do filme Homo Sapiens. O filme é composto por algumas dezenas de longos planos fixos, e não se vê, literalmente, nenhum humano ao longo de toda sua duração. Contudo, cada enquadramento dispõe à vista os escombros, as ruínas, os restos que suscitam o alvorecer e o crepúsculo de uma outrora dominante civilização.


Ao assistirmos Homo Sapiens, ficamos com a estranha impressão de sermos os únicos humanos ainda vivos. Essa sensação, incutida, imagino eu, em cada espectador, faz com que a obra pareça um registro de um tempo porvir, uma espécie de bola de cristal mágica, um dispositivo pelo qual conseguimos viajar para este futuro projetado. No entanto, é óbvio que assistimos a um filme do tempo presente. O que fica em evidência, portanto, é a morte da modernidade como projeto, a falência das ideias que formalizaram a caracterização desse período – o desenvolvimento da ciência desvinculada da ética, a crença de que a racionalidade tudo pode entender e decifrar, a arrogante aspiração a fazer da razão uma qualidade unicamente humana, que nos coloca, portanto, como mestres da natureza, senhores supremos do planeta, a qual tudo e todos devem se submeter.


É a morte desse projeto que me parece sugerir o diretor Nikolaus Geyrhalter, ao nos colocar para dentro dos mais distintos templos de adoração profana da época moderna: shoppings, hospitais, salas de espetáculo, lojas, escritórios, oficinas, parques, usinas nucleares. Parece-me determinante a crítica de que, ao privilegiar o enquadramento destes espaços, o diretor remete a crise do antropoceno às ideias associadas a modernidade. Como bem nos apontou Adorno, o legado da modernidade e de sua fé irresoluta no progresso foram as duas Grandes Guerras Mundiais e a criação da Bomba Atômica. A diegese do filme é a imagem encarnada deste legado.


Mas não é só de imagem que vive o cinema. A diegese de Homo Sapiens também dá ao som um papel central, agindo em conjunto com a imagem para criar este ambiente pós-apocalíptico. É no fora de campo que surgem os cantos dos pássaros, o zumbido dos insetos, toda uma sinfonia exuberante conduzida pela vida animal que, se não encontra representação na imagem, faz-nos imaginar um mundo riquíssimo de diversas formas de vida que sobrevivem e proliferam num planeta, agora, desprovido da vida humana. Esse contraste entre o que vemos (um mundo de escombros habitado pela ausência) e o que ouvimos (um mundo de exuberância e riqueza habitado pelas mais diversas formas de vida) faz com que percebamos a indiferença do mundo perante nossa prepotência. O mundo vai persistir com ou sem nós. Somos nós que não conseguimos persistir sem o mundo. Não pude deixar de pensar, aqui, numa espécie de vingança das outras espécies contra nós, uma vingança sarcástica, que se dá através dos zumbidos e barulhos que não conseguimos entender, mas que imperam como soberanos no ambiente. Mas isso é só porque sou fã dos filmes sobre vingança. Deixa pra lá.


O som também desempenha outra função central no filme. É ele quem nos proporciona a ideia de continuidade e movimento. O som da chuva que cai, do vento que sopra, dos animais que habitam, enfim, o som que evidencia a passagem do tempo, e instala, assim, uma temporalidade no filme que, na maioria das vezes, parece alheia a imagem. São estes sons que nos conduzem por entre as ruínas expostas, deixando explícito que se trata de um filme, blocos de imagem e som em movimento, e que não se trata de estarmos diante de uma exposição fotográfica. O choque entre a ausência de movimento na imagem e a presença do movimento no som acaba por nos colocar num modo de contemplação ativa, como espectadores que participam, através do aguçamento dos sentidos e do florescimento da imaginação, na construção deste mundo que somos convidados a observar.

Um mundo pós humanidade, onde desmistifica-se a ideia de que somos os mestres da natureza, seres soberanos com poderes divinos para criar mundos. Se há alguma divindade no Antropoceno – apesar do privilégio da referência no nome ser nossa – ela é uma só: Gaia.


Homo Sapiens

Direção e roteiro: Nikolaus Geyrhalter

Suiça, Alemanha, Austria - 2016 - 1h 34min


Avaliação:

****



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