A culpa tem gênero.
Harper (a protagonista) é assombrada pelo suicídio do marido. O marido culpa sua esposa por seu futuro suicídio. O padre culpa Harper pelo suicídio do marido. Mas, e a Harper, como ela lida com o suicídio do marido? Ela se culpa?
No filme “Era uma vez em Anatólia”, do Nuri Bilge Ceylan, no último ato do filme, dois homens conversam sobre o suicídio da esposa de um deles. Os homens chegam a conclusão de que a esposa se matou para infringir dor e culpa ao marido, já que este a havia traído. Era sua vingança.
Em “Anatolia”, homens chegam a conclusão de que a mulher se matou para se vingar do marido. Logo, a mulher é tratada como um ser cuja finalidade da vida é o marido. O que os homens no filme de Ceylan não percebem, além da conclusão de que ela se matou para assombrar o marido, é que, numa sociedade machista, existem muitos motivos que podem levar uma mulher ao suicídio, além da suposta teoria machista que os homens conjecturaram.
É muito mais fidedigno à realidade social, em uma sociedade crivada pelas diferenças de gênero, que seja o homem aquele quem se suicida para assombrar a esposa. Porque ele sabe que a culpa é sempre dela(s). Porque o gaslighting é isso. Porque numa sociedade machista, a culpa é sempre da vítima - Harper estava sofrendo abuso e violência. Porque os homens sabem que a culpa tem gênero.
O machismo não termina com a morte do homem, mas se perpetua através dela. A mulher é quem segue a vida sob a sombra do suicídio do marido. Sob a culpa. Porque, em se tratando de violência de gênero, o homem reproduz a violência, a mulher reproduz a culpa. Essa é a dinâmica que se perpetua, que se reproduz. É o machismo estrutural.
Por isso todos os homens em Men são violentos. Por isso, na sequência final, eles se mostram como sendo apenas um e o mesmo. Um nascendo do outro. É o machismo estrutural, sendo a estrutura esse território onde a violência de um pari a violência do próximo. De uma geração a outra. De pai para filho. Até um certo ponto em que, de tão repetido e constante, naturalizamos a violência. Vira comportamento padrão. Não à toa, o primeiro homem, de onde todos os outros nascem, é um homem repleto de galhos e folhagem, talvez em uma analogia quase literal para este processo que citei acima: a naturalização da violência de gênero.
No último diálogo do filme, quando Harper pergunta ao marido o que ele deseja dela, ele, já morto, responde: eu quero seu amor. Voltamos assim ao início do filme. A mulher é obrigada a amar aquele que a violenta, pois só assim ela terá paz. Pois é. A conta não fecha.
Ao perceber isso, Harper abre um sorriso, na última cena do filme, dando a entender que, ao compreender a reprodução monstruosa do machismo e dos traumas perpetrados pelo machismo estrutural, ela enfim se liberta da culpa.
Men
Reino Unido - 2022 - 1h 40min
Direção e Roteiro - Alex Garland
Avaliação:
****
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