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O Último Ano em Marienbad (1961) - Crítica

  • Foto do escritor: João Marcos Albuquerque
    João Marcos Albuquerque
  • 20 de mar.
  • 4 min de leitura

Atualizado: 10 de abr.

A estrutura do filme se articula a partir de um conflito entre a voz que narra e as imagens que vemos — um conflito que nunca se resolve, mas se intensifica em camadas de contradição e hesitação. A narração em off, conduzida por um dos protagonistas, afirma, repete, sugere, mas nunca garante nada: o que vemos pode confirmar o que é dito, desmentir, sugerir outra versão ou parecer independente da fala. Desse embate entre som e imagem nasce uma crise ontológica que atravessa o filme: o que é memória? O que é ficção? O que é o cinema (moderno)?


Esse jogo entre imagem e palavra cria um vórtice temporal, onde os acontecimentos não se distribuem segundo uma linha do tempo, mas se acumulam em uma espécie de presente suspenso e repetitivo, como se estivéssemos presos num sonho que nunca se desfaz. A protagonista feminina parece habitar esse tempo como quem deseja esquecer, enquanto o protagonista masculino insiste em lembrar — e em fazer com que ela lembre também. A memória aqui não é uma reconstrução estável do passado, mas uma força que molda o presente e contamina o olhar, onde a lembrança pode ser uma forma de dominação, e o esquecimento, uma forma de resistência.


A câmera de Resnais desliza pelos corredores do palácio como um espírito sem corpo, em travellings flutuantes, quase coreográficos, que reforçam a ideia de um mundo onírico, imóvel e eterno. Os personagens muitas vezes permanecem estáticos, como figuras de cera, enquanto a câmera os contorna com lentidão cerimonial. O espaço se torna um personagem em si — um palácio mental, habitado por sombras, ecos, repetições: fantasmas. A arquitetura, o cenário, a disposição dos corpos no espaço, se impõem como labirintos visuais, espelhos do labirinto narrativo que estrutura o filme.


A encenação é altamente artificial, antinaturalista — mas é justamente nessa recusa do realismo que o filme alcança sua potência expressiva. A luz e a sombra, o branco e o preto, o gesto e o silêncio — todos esses elementos são organizados com rigor plástico, criando quadros que se aproximam da pintura ou da escultura. A blocagem minuciosa, o ritmo interno dos planos, a montagem precisa e ritmada, tudo conspira para uma experiência estética imersiva, onde o tempo parece se dissolver em sensação.


No contexto histórico do cinema europeu dos anos 1960 — marcado pela explosão da Nouvelle Vague, pelas críticas ao modelo narrativo clássico e pela busca de novas formas de expressão — O Ano Passado em Marienbad se destaca por sua radicalidade formal. Resnais, em parceria com o escritor Alain Robbe-Grillet, propõe um cinema onde a narrativa é absorvida pela linguagem — onde a imagem não ilustra o verbo, mas o desafia. Sua originalidade está justamente em fundir forma e conteúdo num mesmo gesto de vertigem.


Há algo de seminal aqui, já ensaiado em Hiroshima Mon Amour: o modo como o filme desloca o narrador da posição de controle e transforma a própria linguagem cinematográfica em campo de incerteza e vulnerabilidade.


Essa incerteza se manifesta na própria forma como o protagonista fala: com repetições, hesitações, correções, aproximações. A voz em off não guia — ela se perde, ela procura junto ao espectador. Isso cria um espaço onde o filme pensa enquanto mostra.


Resnais transforma a linguagem cinematográfica em expressão direta de um estado interior, mas não para “psicologizar” o personagem. Em vez disso, ele expõe a linguagem cinematográfica à mesma fragilidade da memória, à mesma instabilidade do tempo e da subjetividade.


Essa escolha é radical, especialmente no início dos anos 1960, quando o cinema moderno ainda buscava, em parte, afirmar a autoridade do autor como um novo centro de sentido. É engraçado pensar numa espécie de paradoxo nessa afirmação do cinema de autor: Resnais, para ser um autor, teve de se perder junto com seu protagonista.


Essa é uma das primeiras vezes em que o cinema opera, de forma tão rigorosa, como uma máquina de memória imperfeita — e talvez por isso Marienbad seja tão fundamental na transição para o cinema moderno e para a desconstrução do narrador autoritário.

Na tradição do cinema clássico, o narrador — seja encarnado por um personagem, por uma voz em off ou pela própria estrutura da mise-en-scène — costuma ser apresentado como uma instância de autoridade e estabilidade: alguém (ou algo) que organiza os eventos, estabelece uma lógica de causa e efeito, orienta o espectador e garante a coesão do sentido. Esse narrador é “autoritário” não porque seja despótico, mas porque se impõe como fonte confiável do real dentro do universo fílmico. Ele sabe o que aconteceu, o que está acontecendo e o que acontecerá. Ao abandonar a figura do narrador confiável e, com ela, a ideia de que a narrativa é um território de verdade ordenada, temos um dos primeiros exemplos em que o cinema moderno coloca em crise a posição de autoridade narrativa, substituindo-a por uma experiência fragmentada e lacunar, construída na tensão entre imagem, palavra e memória.

Marienbad desloca o filme da posição de narrar para a posição de lembrar enquanto se narra.

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© Filmes Cuti 2022 - Criado por João Marcos Albuquerque

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