O filme tem dois eventos chaves que mudam a trajetória da narrativa: quando a arma some e quando a família vai pro campo. Estes eventos dividem o filme em três partes: antes do evento do sumiço da arma; depois do sumiço da arma e antes da ida ao campo; e depois da ida ao campo.
A primeira parte trabalha acontecimentos na família que dão um vislumbre do estado da nação: promoção do pai, violência contra a amiga da filha durante manifestação etc. Todos eventos narrativos na primeira parte contextualizam os personagens no estado social e político do país naquele período, sem perder de vista a concretude dos próprios personagens (falo mais sobre isso a frente). Há um equilíbrio entre narrativa (a historia da família) e discurso/denúncia (comentários sociais e políticos acerca do Irã - o discurso vem à tona, neste início, com as cenas de filmagens em redes sociais, que trazem a dimensão documental para jogo).
A segunda parte adentra mais ainda na trama interior da família, sem tanto desejo de representar igualmente uma imagem da nação a partir da família. Busca-se ainda um equilíbrio entre discurso e narrativa.
A terceira parte já faz o movimento inverso: o discurso sobrepuja a narração, e para atingir seus fins, submete-a às suas próprias condições. As mulheres são menos as mulheres das duas partes anteriores do que alegorias (são o povo massacrado buscando a libertação, representado pelas mulheres oprimidas). O pai é menos o pai das duas partes anteriores do que uma metáfora (para o Estado). O filme ganha conotação lúdica, descamba "levemente" para a fantasia, a fim de denunciar a estrutura social e estatal iraniana. Afirmo: neste movimento, as mulheres ainda são mulheres, e o pai ainda é o patriarca, e aqui não ignoro o conteúdo anti-machista e de exposição da misoginia, ambos de extrema urgência e importância no debate levantado pelo filme. Mas há uma notável mudança de registro na figuração dos personagens, que tornam-se mais veículos para propagar uma mensagem do que personagens agindo e reagindo numa diegese previamente e pacientemente estabelecida. Vou explicar melhor.
Não gostei dos caminhos seguidos após o último evento-chave, nem das resoluções tomadas para resolver os problemas impostos. Não se adentra nas razões da filha ter pego a arma (ou eu que não entendi bem, pode ser. Para mim ficou meio jogado). O pai, ao trancar as mulheres na casa e enunciar que elas tem uma hora para dizer a verdade, não me parece adotar uma estratégia tão diferente da que adotara até então (inclusive, o momento do interrogatório profissional me parece mais tenso do que este interrogatório do pai). Mas a trama precisava avançar de algum jeito, e meio que avança de qualquer jeito, pois este ato do pai parece ter sido o suficiente para colocar a mãe em movimento. Tem o fato também da figura do pai, no seio familiar, ter sido trabalhada de tal forma que ele pode ser caracterizado como ausente, não atencioso (tem sempre a desculpa de que está trabalhando demais neste novo cargo em meio as manifestações), mas nunca perigoso ao ponto de atentar contra a vida das mulheres de sua família. De repente, ele se revela um maníaco, sequestrador e psicopata. Entendo essa virada como se despreendendo da narrativa criada até então para se apegar ao discurso (o povo/mulheres ao se rebelar podem acabar com o Estado/tirania/patriarcado), recorrendo à alegoria por meio de uma mudança, a meu ver, muito radical e desproporcional à criação dos personagens até então. Há uma abstração dos personagens rumo a uma ideia (discurso), personagens que foram até o momento caracterizados dentro de um registro de drama social bem pungente e concreto. Ficou muito "on the nose", expositivo e explícito demais, virou lacração para, no final das contas, atingir um lugar comum, um clichê. O desejo de finalizar com um Grand Finale acabou contorcendo a obra para que ela se encaixasse na conclusão, e não o inverso.
É uma questão pessoal, de comprar a virada final ou não. Para mim, ela deturpou a experiência. Gostei bastante das duas partes iniciais, contudo.
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