Os eventos dramáticos ganham tração e emocionam o espectador quando refletidos na figura do filho. É na criança que Justine Triet catalisa os momentos mais afetivos de sua dramaturgia – quando imaginamos o impacto dos desdobramentos da trama sobre a criança. Parto deste sentimento para analisar o filme Anatomia de uma Queda, e busco esmiuçar a seguir os motivos e consequências de Triet dedicar especial atenção para fazer os espectadores projetarem na criança a consequência dos atos dos pais. É aqui que a diretora se utiliza de elementos específicos da linguagem do cinema, elementos que não podem ser traduzidos facilmente para a linguagem do teatro (como boa parte do filme o pode). Me refiro a alguns momentos propiciados pela montagem, pela movimentação da câmera e pelo acesso subjetivo que temos da criança. Estes serão usados como evidências que alimentam o núcleo de minha crítica: analisar os caminhos pelos quais a narração nos coloca no lugar da criança e sob seu ponto de vista, para então acessarmos o que, para mim, constituem os elementos centrais do filme.
O primeiro ponto que chama atenção: só temos acesso às imagens do pai sendo assassinado ou se suicidando a partir da imaginação da criança, que reconstitui os eventos de acordo com o que escuta no tribunal. As cenas em que a criança imagina ambas causas da morte são as primeiras em que Justine nos coloca no interior da criança. Para tanto, ela se utiliza da montagem – que através do corte nos faz articular o que a criança escuta com o que ela imagina – e da câmera subjetiva – onde vemos a reconstituição da morte do pai sob a perspectiva de sua imaginação.
A montagem insiste em refletir na criança muito do que é dito durante o julgamento, e mesmo fora do tribunal. Quantas vezes não há um corte seco, após a fala de algum dos personagens, para o rosto da criança, muitas vezes em um close – provocando um efeito dramático ainda maior? A montagem de Justine cria um vínculo afetivo entre nós e a criança, e entre todos os personagens com ela, o que acaba por conferir, gradualmente, o protagonismo à criança, que vai ganhando proeminência e dominando a narrativa pois que tudo no filme parece ser refletido nele.
Outro momento chave nesta projeção dos nossos afetos sobre a criança é quando ela faz seu primeiro depoimento no tribunal, na metade do filme. Temos um único plano onde a câmera se posiciona de frente a criança, movimentando-se numa linha horizontal de acordo com que os advogados estão falando, sendo atraída por suas vozes. De um lado para o outro, a câmera vai deslizando na horizontal, perpendicular à criança, mantendo apenas ela como presença humana no enquadramento, enquanto ouvimos a fala dos advogados sem vê-los. A cabeça da criança vai de um lado para o outro, também seguindo as vozes. Através de um único plano, onde a câmera balança de um lado para o outro seguindo as vozes dos advogados, mas mantendo a criança sempre no centro do enquadramento, Justine indica o que devemos sentir em relação à criança, nos colocando no lugar dela, esse lugar da dúvida, que te joga de um lado pro outro, e que também é esse lugar do indefeso, que é jogado para um lado e para o outro.
É na figura da criança que o filme extrai a maior dose de empatia e de identificação, e não na figura da mulher, protagonizada por Sandra Hüller.
O filme, porém, não me parece ser tão bem-sucedido na criação do jogo de tensões e incertezas quanto à causa da morte: assassinato ou suicídio? Na verdade, esse não me parece ser o intuito da diretora (justifico minha crença mais adiante) já que a balança, com o passar do tempo, pesa bem mais para o lado da tese do suicídio. Existe um foco intenso na psicologização do pai-marido, o que nos tendenciona para a tese do suicídio – a psicologização do pai-marido é bem desenvolvida, em detrimento da psicologização da protagonista, e isso nos tendenciona a acreditar mais no suicídio do que no assassinato. Do outro lado da balança, a tese do assassinato é conduzida preponderantemente pela figura caricata e espetaculosa do advogado careca, um personagem fraco e estereotipado. Claro aqui que Justine faz uma crítica aos procedimentos machistas do sistema judiciário francês, pois todos os homens que vão depor contra a personagem de Sandra Hüller caem em identificáveis clichês misóginos (o que é aquele psicanalista? E quando usam da bissexualidade como argumento?). A falta de inteligência neste lado da balança nos coloca mais favoráveis a tese do suicídio. A narração, dessa forma, vai nos inclinando para o lado da protagonista. Se Justine queria criar um jogo mais intenso de dúvida na cabeça do espectador quanto a causa da morte do marido, ela pode o ter sacrificado em nome da ridicularização dos agentes que defendem a tese do assassinato. Justine escolheu a crítica ao sistema em detrimento da criação mais profunda da dúvida.
Outro ponto importante, a meu ver, é a necessidade da protagonista em ter, na maior parte do tempo, um paralelismo capaz de gerar envolvimento emocional no espectador. A narração faz com que a protagonista necessite o tempo todo da criança para gerar engajamento afetivo no público. São poucos os momentos em que ela funciona, de fato, de forma independente (como na cena em que chora no carro). Ao final do filme, quando a criança toma a atitude de ficar separada da mãe, Justine inverte o jogo de espelhos, e agora é na mãe que espelhamos o ato do filho. É um dos poucos momentos em que a dramaturgia alcança maior efeito em relação à mãe, provocando nossa empatia.
Aliás, até a trilha sonora parece depender do filho (após a morte do pai), já que é ele quem toca o piano, instrumento a fornecer as únicas músicas do filme além da versão instrumental do 50cent. A trilha sonora é sempre diegética. Este é um dos traços do realismo de Justine, onde toda música que ouvimos no filme pode ter sua fonte sonora identificada. O uso do som sempre diegético tenta dar o mesmo efeito de realismo quanto as cenas em que vislumbramos as imagens a partir das câmeras da polícia e das reportagens, promovendo um tom documental em meio a ficção. Mas são poucos os momentos em que Justine realmente articula um jogo entre verdade e ficção do ponto de vista estético. Na maior parte do filme, essa tensão fica a cargo dos diálogos – se os personagens estão mentindo ou dizendo a verdade. E o fato da trilha sonora depender da criança é mais um argumento para a hipótese central deste texto: a criança é o coração da narração (aspecto emocional) e o ponto de vista do espectador (aspecto racional).
Vamos para a cena da reprodução do áudio da briga do casal. Justine recria os acontecimentos passados e nós temos acesso as imagens da briga até o momento derradeiro em que a imagem volta para o tribunal e escutamos sem ver os barulhos que sugerem um embate físico. Este é um dos pontos mais altos do filme no aspecto dramático, e não é apresentado visualmente – ficamos apenas com os sons. Diferente da visão, a audição não é tão objetiva na reconstituição da fonte dos sons que ouvimos. Não sabemos identificar tão bem o que escutamos. Ficamos com as sugestões sonoras e nossa imaginação realiza o restante do trabalho – espelhando a própria condição do filho, que é cego e se põe a imaginar o que escuta no tribunal. Aqui Justine intensifica o mistério e o drama ao ocultar da visão o momento do clímax da briga, deixando nossa imaginação trabalhar. Um belo exemplo do uso do áudio para além de seu uso convencional no cinema e uma outra forma de Justine trabalhar, esteticamente, o jogo das dúvidas e incertezas, verdades e mentiras.
A protagonista, em diversas ocasiões, pratica esse jogo, escondendo informações, mentindo para se proteger etc. Mas Justine, ao ocultar a ação violenta da visão, deixa a interpretação a cargo dos espectadores, que podem confiar na protagonista ou não. No filme não temos acesso visual a certos eventos chaves, mas apenas ao que a protagonista relata e ao que a criança imagina. Justine não é uma narradora onisciente, capaz de nos apresentar algo que não seja mediado pelos relatos e pela subjetividade da criança. Tudo o que vemos em relação ao passado ou aos eventos que levam à morte são imaginados pela criança – até mesmo esta cena do áudio da briga pode ser entendida como fruto da subjetividade da criança, que está ali no tribunal escutando a gravação. E o próprio fato de não termos acesso visual à briga pode se referir à incapacidade da criança em imaginar seus pais realizando aqueles atos – o que corrobora com a afirmação da protagonista de que o casal nunca havia se agredido fisicamente daquela forma.
Justine opta por uma narração onde não temos acesso ao passado a não ser através da imaginação da criança e dos relatos da protagonista. A narração é tão confiável ao ponto de não criar suspeitas – ela não dá brechas para qualquer tipo de reviravolta ou surpresa que possam advir de uma desconfiança de nossa parte com o narrador, pois tudo o que ela nos apresenta é confiável, no sentido de que não duvidamos do que vemos. Justine não cria imagens falsas que são depois desmentidas. Quando temos acesso ao passado, sabemos se tratar de uma reconstituição da memória ou da imaginação da criança. Nesse cenário, só os personagens podem nos enganar, não a narração. O jogo da dúvida, a malícia, fica a cargo dos personagens, que podem estar mentindo ou não, porém, nunca o saberemos, pois, a própria Justine-narradora, a partir da forma que constrói seu filme, também parece não saber. Justine-narradora está ali no tribunal sem acesso aos fatos, acessando apenas os relatos, como a criança. Esta postura, por parte da narração, nos incentiva a dar a prerrogativa da inocência à protagonista. A narração do filme não cria nenhuma imagem ambígua ou fato dúbio que seja independente do que é relatado no julgamento, e que assim seja capaz de guiar nosso julgamento para um lado ou para o outro. Não há, por parte da narração, a tomada explícita de um lado. Mas há sim um tendenciamento favorável à tese do suicídio, conforme já explicitei nos primeiros parágrafos, e também porque a narração nos coloca constantemente no lugar do filho. Quando o filho chega a duvidar das palavras de sua mãe, e apenas nestes momentos de incerteza do filho, é que a narração cria imagens que não condizem com o factual, pois que são frutos da imaginação. Neste momento, apesar da narração dar a ver, sabemos se tratar de uma fabulação da criança.
Temos um narrador, portanto, que se encontra na mesma situação da criança – aquele que pouco sabe, que busca saber, que vai descobrindo os fatos conforme o andamento do julgamento. Não temos um narrador onisciente capaz de nos revelar a verdade “de fato”, nem tampouco um narrador suspeito, capaz de nos enganar. Creio que, por isso mesmo, a verdade, no sentido da causa da morte, pouco importe em toda construção de Justine, e isso o torna um filme de julgamento peculiar. O que parece importar é respeitarmos a condição de inocência da protagonista, até que se prove o contrário. A sensação, ao final do filme, é a de que a protagonista foi vítima de uma espetacularização absurda a respeito do suicídio de seu marido. Que esta família, abalada por um enorme trauma e em seu momento de luto, teve de lidar com o sistema opressivo da justiça francesa e da mídia local. Um verdadeiro massacre moral, emocional e psicológico cometido contra essa família, num de seus momentos de maior vulnerabilidade. O peso dessa constatação dá a tonalidade final do filme. Ao deitar-se no sofá e receber a companhia de seu cachorro para dormir, percebemos que agora a protagonista poderá descansar, na escuridão de sua casa e perto de quem não a julga, longe dos holofotes da mídia e dos inquisidores do tribunal. O filme se revela: o mais importante, afinal, era trabalhar a relação entre mãe e filho num momento de crise, luto e trauma. Trabalhar a dúvida não quanto à causa da morte, mas quanto à capacidade de um filho em duvidar de sua mãe. Quando a protagonista chora no carro, ela chora por perceber sua relação de confiança com o filho abalada.
Um outro ponto importante: ao nos colocar no lugar da criança, Justine busca mobilizar os preceitos ligados a ideia de infância: ingenuidade, fragilidade, vulnerabilidade, ignorância, sinceridade, desejo de exploração, curiosidade etc. Preceitos que Justine parece considerar adequados para seu filme de tribunal, preceitos que ela busca emular em nossa experiência como espectadores. E são nestes momentos, onde estes preceitos são sentidos por nós, em nossa experiência como espectadores, que nos engajamos mais afetivamente com o filme. Mas além de ser uma criança, ele também é filho. Aqui entram os preceitos ligados a ideia de filho: obediência, devoção, amor etc. A questão é que, ao nos colocar neste lugar da criança, ela também nos coloca no lugar de filho. Esse caminho cobra seu preço: percebemo-nos engajados emocionalmente pelas projeções que fazemos na criança, enquanto somos conduzidos a engajar emocionalmente também com a protagonista, mas sem o mesmo sucesso. Existe um pequeno descompasso na criação dessa relação espectador-protagonistas. Ao mesmo tempo, há uma bela e sutil cumplicidade da diretora com sua principal personagem.
Ademais, o filme se sustenta principalmente por meio dos excelentes diálogos e atuações, que vão ditando o ritmo da obra, mas que acabam por dar uma ênfase maior no que o filme tem de potencial teatral, e não muito no que o filme tem de realização cinematográfica.
Ótima análise crítica. Me ajudou a diminuir a ansiedade em saber a real causa da morte de Samuel.