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Glória Feita de Sangue (1957) - Crítica

  • Foto do escritor: João Marcos Albuquerque
    João Marcos Albuquerque
  • 8 de abr.
  • 6 min de leitura

Atualizado: 10 de abr.

Paths of Glory (Glória Feita de Sangue, no Brasil) encena a Primeira Guerra Mundial não como palco de heroísmo, mas como teatro grotesco. As decisões militares, que levam à banalização da morte, são motivadas por vaidade, ambição pessoal e jogos de poder. O valor da vida humana é sistematicamente subordinado aos caprichos do ego e à manutenção de uma ordem hierárquica corrupta. O filme é uma denúncia implacável da lógica sacrificial da guerra, e já antecipa, mesmo que de forma discreta, as obsessões temáticas e formais que irão atravessar toda a obra de Kubrick.


Glória Feita de Sangue é dividido em dois movimentos claros: a imposição de uma ordem absurda (um ataque suicida) e seu desenlace no campo de batalha; e o julgamento farsesco que sentencia à morte três soldados como exemplo, com o fuzilamento dos mesmos. No centro desse colapso moral está o coronel Dax (Kirk Douglas), oficial íntegro que tenta resistir à engrenagem, mas acaba tragado por ela. A estrutura narrativa é concisa, mas seu impacto se dá justamente pela maneira como Kubrick utiliza o tempo e o espaço para encenar o insuportável, colocando seus espectadores diante da normalização do inaceitável.

 

O uso do tempo na cena do fuzilamento é especialmente notável: a dilatação temporal funciona como suspensão ética — Kubrick obriga o espectador a encarar o peso da injustiça imposta. Todo a cena é temporalmente dilatada: dos corpos sentenciados caminhando lentamente até o local do fuzilamento, os murmúrios e as súplicas dos condenados, eles sendo amarrados, depois vendados, até o momento em que são, finalmente, assassinados – o assassinato, nessa lógica de extenuação psicológica levada a cabo pela dilatação temporal, serve até como alívio para o espectador. Essa cena encapsula o tom sombrio do filme, que segue num ritmo de intercalação do horror com a ironia, apostando nesse aparente jogo de contrastes.

 

Na relação espacial, há uma semelhança brutal entre os espaços abertos e os fechados, mesmo que filmados de forma distintas. O campo de batalha e o tribunal militar compartilham uma mesma função estrutural: ambos são dispositivos de produção da morte. O campo de batalha, com sua vastidão arrasada, sua lama e seus cadáveres anônimos, encena a violência física direta; é o espaço onde o corpo é imediatamente vulnerável à máquina de guerra. Já o tribunal, austero, geométrico, enclausurado em sua simetria de poder, é o lugar onde a violência é racionalizada, burocratizada, estetizada pela linguagem jurídica e militar.

 

Kubrick constrói esses espaços de modo a elidir as fronteiras entre o “fora” e o “dentro” da guerra, revelando que não há trégua nem neutralidade em nenhum lugar — todos os ambientes são colonizados pela mesma lógica disciplinar e sacrificial. A trincheira e o tribunal não se opõem: são dois modos de organização da morte. E Kubrick organiza sua mise-en-scène de acordo com esta divisão espacial.

 

No campo de batalha (e sobretudo nas trincheiras), Kubrick utiliza longos travellings laterais e frontais. A câmera acompanha o coronel Dax e os soldados em deslocamento, num movimento fluido que reforça a claustrofobia, a imersão e a sensação de perigo constante. A movimentação contínua da câmera transmite urgência, tensão e desorientação. A câmera acompanha o coronel Dax como se estivesse enfiada no próprio corpo da guerra, arrastando-se com ele por um labirinto lamacento. A câmera, neste espaço, é empática com os personagens, colocando os espectadores no furor da guerra.

 

No tribunal, por contraste, a câmera é predominantemente estática ou com movimentos mínimos, organizando o espaço a partir de composições frontais, geométricas e hierárquicas. O espaço não é mais de movimento, mas de julgamento. O espectador não percorre, apenas observa — como quem assiste a um ritual fixo, frio, institucional.

 

No campo de batalha, os quadros são mais instáveis, irregulares. A profundidade de campo e os elementos visuais (lama, fumaça, obstáculos) criam uma composição em que o sujeito se dissolve no ambiente hostil. O aspecto formal acentua a desorientação física e emocional da guerra, onde o corpo está vulnerável e perdido.

 

No tribunal, os enquadramentos são meticulosamente organizados. Há a busca de equilíbrio composicional. A mise-en-scène valoriza a geometria do poder: juízes no alto, réus abaixo, Dax em leve contraplongée quando tenta se insurgir — mas sem jamais romper a ordem espacial. A câmera é bem menos empática do que no campo de batalha. Aqui ela é mais distante. O espectador observa a cena como se assistisse a um julgamento kafkiano, onde o desfecho já está decidido. Essas escolhas formais comunicam a racionalidade aparente da injustiça institucional: tudo é limpo, organizado, mas vazio de sentido moral. Há um controle absoluto da cena por Kubrick, que se traduz como a impossibilidade de qualquer insurgência naquele espaço totalmente controlado.

 

Por trás dessas diferenças, contudo, o que une os dois espaços é a função formal de intensificar a ausência de saída, o colapso da ética e a maquinaria do poder. Kubrick os articula como duas faces do mesmo dispositivo de dominação. Ele filma o campo de batalha e o tribunal militar de formas tão distintas — em termos de câmera, composição, movimento e atmosfera — a fim de expor a lógica específica de cada espaço, ao mesmo tempo em que denuncia sua profunda equivalência moral. A justaposição entre esses dois estilos — o movimento frenético da guerra e a estase solene do tribunal — é uma das grandes ironias do filme: o campo de batalha parece anárquico, mas é produto de uma ordem estratégica absurda; o tribunal parece ordenado e racional, mas serve para validar a injustiça.


Há um outro jogo de contrastes que cria o ritmo da obra. O filme se estrutura sobre uma tensão rítmica e tonal que intercala o cômico e o trágico, a ironia e o horror, como se esses registros, assim como os espaços que analisamos acima, também não fossem opostos, mas as duas faces do mesmo absurdo estrutural. Kubrick nos mostra que o riso e o choque não vêm de lugares diferentes: eles emergem do mesmo centro lógico - a racionalidade militar como uma engrenagem que perdeu qualquer relação com a vida e com a experiência humana.

 

Outro paralelo inevitável é o de Paths of Glory com Dr. Strangelove. Paths já antecipa diversas questões estéticas e temáticas de Strangelove, mesmo que em termos de tom e atmosfera, sejam filmes bem distintos.

 

Paths of Glory, apesar dos escapes cômicos, mantém um tom trágico. A crítica é feita com seriedade, ainda que com ironia sutil. O absurdo está presente, mas é apresentado como um drama ético: um homem íntegro (Dax) confronta uma estrutura corrompida. O espectador compartilha da angústia e da impotência dos condenados.

 

Dr. Strangelove, por sua vez, explode esse tom em farsa. A lógica é ainda mais absurda — e por isso Kubrick opta pela sátira grotesca, em que os personagens já são delírios caricaturais.

 

Existe uma continuidade explícita entre a sala do tribunal (Paths of Glory) e a War Room (Dr. Strangelove). A sala do tribunal militar em Paths of Glory é um espaço ordenado, cerimonial. A War Room é quase idêntica em estrutura: ordenada e geométrica, mas o tom é ditado pela insanidade. É o espaço onde o fim do mundo é discutido com retórica técnica, entre piadinhas diplomáticas e equações sádicas.

 

Ambos os espaços são salas de comando onde o horror se utiliza da racionalidade. A mise-en-scène simétrica, os planos frontais, o uso da profundidade do campo — tudo enfatiza a frieza do poder, a estética da autoridade.

 

Em Paths, Dax é um personagem trágico: ético, combativo, lúcido. Seu confronto com a máquina revela sua impotência, mas ele ainda representa uma figura de resistência moral. Em Strangelove, não há mais esse sujeito. Todos estão contaminados pela lógica do colapso, há um niilismo latente: o presidente é impotente, o general é paranoico, o cientista é um ex-nazista enlouquecido. Não há mais heróis, apenas caricaturas do horror.

 

Esses dois filmes também refletem momentos diferentes do século XX. Paths of Glory, filmado no pós-guerra, ainda dialoga com um imaginário humanista: a possibilidade de denunciar a barbárie e restaurar alguma dignidade moral. Ainda há espaço para indignação e esperança. Dr. Strangelove, em plena Guerra Fria, assume que o mundo já entrou num ciclo de autodestruição gerido por sistemas automatizados. A crítica humanista já não tem mais espaço.

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