top of page
Foto do escritorJoão Marcos Albuquerque

O Cinema, a Mostração e a Narração

Atualizado: 13 de jun.

Buscando demarcar as diferenças entre Cinema e Literatura, Jean Mitry escreveu a seguinte frase lapidar: "O romance é uma narrativa que se organiza em mundo, o filme um mundo que se organiza em narrativa". Podemos entender esta frase da seguinte forma: enquanto o autor, na literatura, parte da página em branco, e de palavra em palavra vai construindo (organizando) um mundo, o cinema já parte do mundo, pois ao ligar a câmera, toda imagem já vem impregnada de mundo, e deste mundo o cineasta vai organizando sua narrativa.


Uma qualidade essencial do cinema, seguindo Mitry, seria sua capacidade de mostrar o mundo, o que vamos chamar daqui pra frente de “mostração”. A mostração precede a narrativa. É a partir da mostração que se desenvolve a narração - é a partir do que se mostra que se conta uma história.


Agora vou extrapolar o pensamento de Mitry para sugerir que é possível dividir a história do cinema em dois tipos de direção: filmes que  priorizam a “mostração” e aqueles que priorizam a “narração”. Aos primeiros chamaremos de “Modelo Rosselini”. Aos outros chamaremos “Modelo Hitchcock”. Ambos os tipos mostram e narram. É apenas uma questão de ênfase e primazia.


O Modelo Rossellini - Pensemos em Alemanha Ano Zero, de Rosselini. O país em ruínas, a paisagem arrasada do pós 2ª Guerra - o mundo naquele tempo e espaço é elemento central do filme. Rosselini deixa a realidade se manifestar e desenvolve sua narrativa ali, naquele espaço, conforme as circunstâncias locais. Há diluição da narrativa no espaço. A narrativa destaca o mundo. A mostração prioriza o olhar.


O Modelo Hitchcock - Agora pense no cinema de Hitchcock. Um cinema realizado dentro do estúdio, com total controle sobre a produção, extraindo do mundo o essencial para contar uma história. Toda narrativa funciona encadeando causas e efeitos, ação que gera reação, e o mundo é submetido a essa lógica. A narração prioriza o pensamento lógico para assim engajarmos com o enredo. O mundo destaca a narração. 


Podemos dizer que o Modelo Rosselini busca dar prioridade à mostração, deixando a realidade se manifestar e construindo sua narrativa em torno dela - esse é um dos desejos centrais aos cineastas Modernos e seus movimentos: Neorrealismo Italiano, Cinema Novo, Nouvelle Vague etc. A ideia central dos cinemanovistas não era mostrar a verdadeira realidade do povo brasileiro?


Já no Modelo Hitchcock nosso olhar serve mais para nutrir o pensamento lógico com informações sobre a trama do que para contemplar a imagem (como na “mostração”, onde a trama costuma ser secundária). O mundo é “reduzido” ao mínimo necessário para a fruição cristalina da narrativa. Vê-se a primazia do narrar sobre o mostrar em grande parte do cinema clássico, convencional, etc


Não se trata de um embate entre “mostração” x “narração”. No cinema só há narração a partir da mostração. É uma questão de primazia de um sobre o outro. Mostração = Apelo ao Olhar, diluição da narrativa no espaço. Narração = Apelo ao Pensamento Lógico, concentração na narrativa.


Alguns pontos centrais que merecem atenção:


- O primeiro cinema, dos irmãos Lumière, era um cinema da mostração. O intuito maior era o de mostrar o mundo enquanto mostrava-se para o mundo este novo aparato: o cinematógrafo.


- Após o primeiro cinema, caracterizado pela mostração, temos o que ficou conhecido como o período do cinema clássico-narrativo, onde houve um predomínio da narração. Com o fim da Segunda Guerra e o advento do Cinema Moderno, há então a irrupção de um novo cinema, que busca equilibrar narração com mostração, ou até mesmo dar primazia à mostração, como vimos no post;


- É claro que dentro dos dois espectros há aqueles que encontram o equilíbrio. Para fins didáticos e de especulação filosófica, forcei a divisão, mas o cinema é bem mais complexo do que a simplificação dualista - nem tudo se encaixa com facilidade nos espectros propostos.


- Como já disse antes, há mostração e narração em (quase) todos os filmes. Imaginemos um filme de ação blockbuster. Na maioria dos casos, o apelo maior fica do lado da narração. Porém, quando vemos aquelas explosões pirotécnicas, perseguições de carro à máxima velocidade, um ator bonitão, uma atriz bonitona, e quando estes bonitões se beijam, o que está em jogo é a mostração – quem não gosta de admirar atrizes ou atores bonitões que jogue a primeira pedra! Nestes momentos, a narrativa dá espaço à mostração, e o avançar da trama é posto em suspensão para contemplarmos o “espetáculo” que o diretor nos dá a ver;


- Filmes que dão primazia ao mundo mesmo que este mundo seja digital (caso de Avatar) também podem ser encaixados no espectro da mostração. O que vale, neste caso, é encantar pelo poder do espaço e do espetáculo – explosões, monstros assustadores, construções de outros mundos (digitais ou não);


- > A citação de Jean Mitry é do livro "Esthétique et psychologie du cinema"


Comments


bottom of page