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Foto do escritorJoão Marcos Albuquerque

True Things (2021)

Atualizado: 6 de out. de 2022

Estamos vivenciando uma fase do cinema em que os temas caros ao feminismo estão florescendo não só no campo da narrativa, mas também no plano da estética. E aqui as coisas ficam ainda mais interessantes. Quando a direção se utiliza da estética para criar os efeitos desejados, não se limitando a trabalhar o feminismo apenas através da história. Óbvio que não tem problema nenhum recorrer apenas aos elementos narrativos para passar a mensagem. Mas quando a estética faz parte desse mesmo movimento, tudo fica mais rico e interessante. Este é o caso aqui, e por isso o filme me tocou particularmente.


True Things consegue algo que poucos filmes almejam, ainda menos são os filmes que conseguem. Ele coloca você, espectador, como um elemento central e ativo durante a construção da obra. Ele exige que você julgue o que está acontecendo a todo instante. Que você julgue a protagonista. Sem seu julgamento, não há filme. Isso é bem interessante e se torna cristalino no final. E a direção é extremamente talentosa para te colocar nessa função de juiz(a). Você, naturalmente, no decorrer da obra, vai recebendo diversas insinuações, sugestões, e são estes gestos que lhe colocam na postura ativa para julgar. São eventos, momentos, interações, em que, naturalmente - e aqui está o pulo do gato - você irá desenvolver um julgamento acerca do que está acontecendo - mesmo que não tenha provas para afirmar seus julgamentos.


Daqui em diante é Spoiler. Só leia se você já assistiu o filme.


A questão é que acusamos a mulher de estar imaginando o crush dela, só porque o cara é um macho tão escroto, fazendo coisas tão escrotas, que, em nosso machismo cotidiano, imaginamos: “ih, essa mulher tá maluca, tá delirando, esse cara é imaginação dela. Como alguém some assim, do nada, e depois aparece assim, do nada? Essa mulher só pode estar delirando”.


A diretora propõe, através de escolhas formais e narrativas, que a protagonista está passando por uma fase difícil, confusa, solitária e carente. Nós, espectadores, fazemos todo o trabalho de a julgar como "maluca", "delirante".


Uma direção impassível que, através de escolhas estéticas para compor a mise en scène (aspect ratio; o ato de focar e desfocar constante; enquadramento claustrofóbico; contracampo embaçado) escancara nosso machismo mais oculto. Estas técnicas e elementos estéticos, aqui, funcionam para passar os efeitos de ilusão, de confusão, de dificuldade para pensar e enxergar, de delírio, sonho, realidade x ficção, ou seja, a estética se apropria das convenções formais do cinema para atiçar nossos julgamentos, preconceitos e predisposições. Aqui a estética é usada em perfeita sintonia com a narrativa, fazendo com que você, eu, enfim, os espectadores, através de nossos preconceitos enraizados, julguemos injustamente a protagonista - assim como as mulheres são julgadas, diariamente, em nossa sociedade.


Que fique claro: em nenhum momento da obra, as coisas ficam claras. A diretora mantem essa tensão constante ao não nos dar provas concretas para embasarmos nossas acusações. Ela só insinua, sugere - e basicamente por vias estéticas, ou seja, não verbal (não contamos com o poder das palavras para deixar as coisas mais claras). É apenas ao final do filme que tudo fica cristalino. Mas aí já é tarde demais para nós e para ela. Já a julgamos. Já decretamos seu destino. Já fomos machistas e ela já sofreu o machismo.


O cara não é uma invenção dela. É apenas um macho escroto, abusivo, com comportamentos repulsivos que maltratam nossa protagonista.


Nesse sentido, lembrou muito o filme holandês "Instinto", de 2019, da diretora Halina Reijn. Dois filmes que jogam com o espectador todo o tempo para, no final, provar que estávamos sendo apenas machistas. Mas se Instinto faz esse jogo através dos elementos narrativos, True Things o faz também por vias estéticas. E isso o diferencia dos demais.

Ah, e mais uma vez, Tom Burke interpretando um macho escroto. Com excelência.


Matéria escrita por João Marcos Albuquerque durante a cobertura da 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.


Coisas Verdadeiras (True Things)

Direção: Harry Wootliff

Roteiro: Molly Davies e Harry Wootliff

Reino Unido - 2021 - 1h 42min


Avaliação:

****

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