Finis Terrae (1929) - Crítica
- João Marcos Albuquerque
- 13 de mar.
- 2 min de leitura
Atualizado: 5 de abr.
Mais do que narrar uma história, Finis Terrae faz com que o tempo e o espaço ganhem espessura própria, desvinculada da função dramática tradicional.
Uma das marcas mais inovadoras do filme está na abundância de planos do mar, das rochas, do vento, da espuma. Não há nessas sequências nenhuma ação narrativa decisiva, nenhum desenvolvimento de personagens, nenhum acontecimento externo relevante. No entanto, são precisamente esses planos — sua duração, seu ritmo, seu poder expressivo — que compõem o coração estético e filosófico da obra.
Epstein trata o tempo não como um instrumento de progressão, mas como matéria sensível, vivida, orgânica. Nesse sentido, sua aproximação com o pensamento de Henri Bergson é clara: o cineasta está interessado naquilo que Bergson chamava de “duração real” — um tempo interior, fluido, que escapa às métricas lineares e revela a intensidade da experiência. Os planos do mar, ao se acumularem, criam uma experiência de tempo que aprofunda o que está presente. É como se o espectador fosse convidado a entrar em sintonia com o ritmo da própria ilha, com o movimento incessante das ondas e com o cansaço silencioso dos corpos dos trabalhadores.
Essa operação desloca o centro da atenção do filme: não é mais a ação, mas a atmosfera; não mais a narrativa, mas a sensação; não mais os eventos, mas o estado das coisas. O cinema de Epstein, especialmente neste momento de sua obra, se aproxima de um realismo poético da matéria, onde a natureza não é pano de fundo, mas sujeito expressivo. O mar não ilustra o drama dos homens — ele o encarna, o traduz, o amplifica. A solidão das pedras, o ritmo das marés, a aspereza dos ventos — tudo isso se torna um espelho do humano, ou melhor, um elo entre o humano e o cósmico.
Jean Epstein foi um dos primeiros teóricos e cineastas a propor a ideia de fotogenia, entendida como a capacidade do cinema de revelar “a alma secreta das coisas”. Em Finis Terrae, essa revelação acontece justamente quando a câmera se demora sobre o que não é narrativo: o fluxo do mar, o silêncio das rochas, a passagem do tempo sem propósito. O filme deixa de ser uma narrativa para se tornar uma espécie de estado poético, onde a imagem ganha potência expressiva em si mesma.
Ao construir uma obra feita não da ação, mas da duração acumulada das imagens, Epstein antecipa muitos dos caminhos que os cinemas moderno e contemporâneo iriam trilhar nas décadas seguintes: o tempo dilatado de Tarkovski, a relação sensível entre homem e natureza em Terrence Malick, o cinema onírico de Apichatpong Weerasethakul. Mas Finis Terrae permanece como uma das formas mais puras e radicais dessa proposta: um filme que pensa com as ondas, que sente com o tempo, que escuta o silêncio das coisas.
Uma verdadeira matriz temporal de todo um certo cinema vindouro (moderno, slow e fluxo)
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