“We gestate in Sound, and are born into Sight. Cinema gestated in Sight, and was born in Sound[1].” Walter Murch
O lendário editor Walter Murch diz que, enquanto na barriga da mãe, o sentido que impera é a audição. O bebê em gestação capta os sons do mundo uterino, os barulhos do interior de sua mãe – o badalar constante e abafado do coração, os rugidos do intestino, o compasso e o descompasso do organismo em funcionamento. Os demais sentidos pouco captam. Portanto, antes de virmos ao mundo, lá nas entranhas de quem nos produz, já escutamos e trabalhamos a audição, em detrimento dos demais sentidos, que ficam quase que em modo de suspensão, aguardando a chegada da luz.
O cinema seguiu o caminho oposto da biologia do nascimento humano. O cinema vem primeiro como imagem, como um dispositivo acessado pela visão. E só depois, com o desenvolvimento tecnológico, surge o som. Não vou entrar nos detalhes, mas a recepção do som no cinema, por parte de muitos cineastas, entre eles Eisenstein e Chaplin, foi bem conflituosa. Acreditavam eles que o som era redundante, que tornava o cinema uma cópia, um duplo do real, e que o som, se e quando usado, deveria ser aplicado de uma forma diferente, sem coincidir som com imagem, para não submeter o cinema sonoro ao teatro. Portanto, estes cineastas preconizavam um uso do som completamente diferente do uso que imperou na história do cinema desde então – o som como uma sombra da imagem, como um adendo, um acompanhamento do que enxergamos na tela. No decorrer da história do cinema, naturalizamos esse entendimento do som. Não à toa, dizemos, no senso comum, que vemos um filme, reduzindo a experiência cinematográfica à visão. Essa foi a trajetória do som no cinema, de forma geral, até os dias de hoje – o som sempre representado na imagem, a fonte do som sempre aparente, a significação do som sempre disponível – com raras exceções.
Memoria, o último filme do diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul, é uma destas exceções. Em Memoria, o som é o elemento central da narrativa. O filme nada mais é, no plano da história, do que uma mulher buscando a causa de um barulho que ela escuta. Esse barulho, que escutamos junto com a personagem, é como que seu leitmotiv, assim como o elemento a ser decifrado, decodificado, examinado, perseguido. É a razão de ser da personagem nesse curto espaço de tempo em que a acompanhamos na tela. Se no início não sabemos se o barulho é externo à personagem, algo que advém do ambiente, no desdobrar do filme entendemos que o barulho é interno, subjetivo. E aqui já temos uma das primeiras quebras com o uso corriqueiro do som no cinema: não encontramos, na imagem, a representação do som. Não há indícios visuais para compreendermos sua origem, sua fonte.
A ausência de uma representação do som na imagem causa enorme estranhamento – em mim, até uma certa tensão, que se escalou conforme os intervalos entre os disparos do barulho tornaram-se mais curtos. Adentramos no mistério junto com a personagem. O som aflige a nós, espectadores, de uma forma diferente que aflige a personagem. Se para ela é uma questão investigativa, de saúde psíquica e existencial, para nós é uma questão também cinematográfica, de choque com o não habitual. Não estamos acostumados a ver/escutar um filme, apenas a ver. Não sabemos de onde vem o som, nem conseguimos imaginar sua fonte.
Michel Chifon, grande teórico do som no cinema, diz que existem três modos de escuta. O modo causal, que consiste em escutar um som para coletar informações sobre sua causa (ou fonte), utilizando o contexto para compreender o som – quando você escuta um latido vindo da sua sala e associa o latido ao Rex, já que ele é seu único cachorro; o modo semântico, cujo som é veículo de uma mensagem, interpretada por um código ou linguagem; e o modo reduzido, que seria uma apreensão e examinação do som apenas por si só, como elemento sonoro, sem relação com sua causa, significado ou contexto – o som como puro objeto sonoro. Em Memoria, utilizamos os três modos de escuta, através da jornada de nossa protagonista. É memorável a cena do estúdio em que Jessica (interpretada por Tilda Swinton) tenta descrever o som que ela, e só ela, escuta, para Hernán (interpretado por Juan Pablo Urrego), o técnico de som. A dificuldade que Jessica tem para descrever o som – subjetivo – através das palavras – objetivas – é da ordem do incomensurável. Como descrever um som, como descrever uma dor, como descrever algo da dimensão da subjetividade? Jessica vai descrevendo atrelando o som a uma causa hipotética. Ela descreve na primeira vez o som como “uma enorme bola de concreto que cai em uma superfície de metal, rodeada por água do mar”. Depois, diz que o som é mais metálico. Depois, mais terroso. Até que, mais para o final, ela diz: “[o som] é como um estrondo do núcleo da Terra”. Nas tentativas de Jessica em descrever o som para Hernán, temos o uso da escuta causal e semântica. Quando ela tenta representar a ideia do som através de objetos que se chocam, imaginando como seria o som de uma bola de concreto caindo numa superfície de metal, ela invoca o uso da escuta causal, pois dá uma causa à origem do barulho. Depois, através do uso dos adjetivos terroso e metálico, ela tenta passar uma mensagem codificada para Hernán, convocando o uso da escuta semântica. Hernán, conforme Jessica progride na descrição, tenta criar os sons em seu aparelho tecnológico. Numa cena futura, vemos Hernán apresentar o som para Jessica através de uma música que ele compôs, já que, de certa forma, tornou-se obcecado pelo som como objeto sonoro, apreciado agora por conta de sua textura, vibração etc. (uso reduzido da escuta).
Apesar das três modalidades da escuta entrarem em ação, ainda assim, não temos a menor ideia de que som é aquele. Nossa escuta nos torna apenas mais apreensivos. Assim como Jessica, continuamos à deriva, sem explicação quanto a sua fonte, sua origem, seu significado. Mas, principalmente, ainda não conseguimos executar aquilo que estamos tão acostumados a fazer na nossa prática diária e cinéfila, ainda não conseguimos colar o som numa imagem, e isso vai nos deixando perplexos, intrigados, sugestionados e desejosos por uma conclusão que impreterivelmente saciará nossa imensa dificuldade em escutar um som sem representação na imagem.
Sem falar que, convenhamos, é muito ruim sentir algo que não descobrimos a causa. Lembro-me bem de quando fui diagnosticado com depressão. O que me fez chegar ao diagnóstico e iniciar a investigação da doença foi uma vontade constante de urinar. Eu urinava e, após terminar, a vontade persistia. Fui a vários urologistas. Nenhum deles encontrava a causa. Eu torcia para encontrar alguma bactéria, alguma causa material, mas, exame após exame, as imagens nada diziam. E a vontade de urinar persistia. Até que um dos médicos sugeriu a hipótese da depressão. Tudo que eu mais temia era uma causa subjetiva para uma sensação física. A causa da minha sensação era subjetiva, psicológica, minha dor não estava atrelada a nenhuma causa material. Assim como o barulho que Jessica escuta, a princípio.
Minha identificação com Jessica foi rápida. E assim como ela, busquei uma explicação para o que me afligia. Mas se minha causa era uma doença, uma desordem psíquica e fisiológica, tratada com medicação e terapia, Apichatpong transformou a causa de Jessica num acontecimento fascinante ao final do filme (ainda chegaremos lá). Apichatpong sofria de Síndrome da Cabeça Explosiva, a síndrome que acompanhamos em Jessica. Portanto, Apichatpong se inspira nessa síndrome, bagunça-a, subverte-a e a transforma num material poético cuja funcionalidade é ser o campo gravitacional da narrativa. Assim como eu e Jessica, Apichatpong também não faz ideia da causa de sua síndrome, qual foi sua origem. Isso atormenta, mas também serve de catalisador para a criação artística. Entretanto, Jessica, ao contrário de mim e do Apichatpong, descobre a origem do seu som.
Na história do cinema, em poucas ocasiões, lidamos com o que o músico e teórico francês, Pierre Schaeffer, chama de acusmática. Um som é acusmático quando o ouvimos sem sabermos sua causa. Michel Chifon pega essa ideia e cria o conceito “Acousmêtre”. O Acousmêtre é um personagem que apenas escutamos a sua voz, sem nunca o vermos. Dessa característica parece advir um enorme poder. É o caso dos personagens HAL, do filme 2001, Uma Odisseia no Espaço, e do personagem da mãe, em Psicose. Em ambos, há uma voz que parece vir de qualquer lugar, sem sabermos de onde vem especificamente. Essa conexão entre escutar-sem-ver e potência, é o Acousmêtre que nos sugere Chifon.
O efeito do acousmetrê sobre o espectador depende do quanto o filme posterga a fusão do som com a imagem. Até a revelação da fusão, cabe ao espectador imaginar, especular, criar – o que só aumenta a tensão e a sensação de poder que advém do personagem. Contudo, no momento da fusão, nesse mesmo instante da coincidência entre imagem e som, há uma queda vertiginosa do poder do personagem. A revelação da origem do som acaba com as especulações, e dá um aspecto mundano ao que antes era etéreo. E aqui temos mais um paradigma quebrado por Memoria. O momento da revelação é desconcertante. O poder que advém do som fica ainda maior quando lidamos com sua manifestação física. E as dúvidas só aumentam. A revelação da causa, da origem, nada nos explica. A resposta que nos é dada não satisfaz, abrindo novas questões. Estamos diante de um novo enigma. E a sensação que ficou, em mim, é de completa e total estupefação. Eu, literalmente, fui ao delírio.
Quando saímos do útero para o colo da mãe, nesse contato primordial, começamos a estabelecer as primeiras conexões entre o que ouvimos na gestação e a fonte daqueles sons, mesmo que inconscientemente. Nossa mãe é não só a origem de nossa vida, mas a fonte dos primeiros materiais captados pelos sentidos, assim como a primeira fusão que fazemos entre som e origem do som. Walter Murch, quando diz que o cinema gestou na visão, mas nasceu no som, acaba por sintetizar o que experienciei ao ver Memoria – essa espécie de nascimento da vida que se dá, primeiro, através da audição. Murch tinha em mente uma classificação dos elementos e das qualidades sonoras que justificam sua ideia do nascimento do cinema pelo som – uma nova temporalidade, continuidade, possibilidades de se fazer e sentir cinema - eu tenho em mente, apenas, a ideia de nascimento, pura e simples, de um novo tipo de cinefilia, agora que experimentei o cinema desta forma. Memoria fez-me sentir como que um recém-nascido pro cinema, devido ao espanto do jogo que estabelece entre som e imagem.
Eu audiovi Memória. Apichatpong, primeiro, me conduziu às origens, à vida elementar da gestação, de quando escutamos sem ver, e depois me fez nascer novamente, quando pude ver o que escutava. Agora, vejo/escuto o cinema de uma forma completamente diferente.
[1] Tradução livre: Gestamos no som e nascemos na visão. O cinema gestou na visão, e nasceu no som.
Matéria escrita por João Marcos Albuquerque durante a cobertura do 22º Festival do Rio.
Memoria
Direção e roteiro: Apichatpong Weerasethakul
Colômbia, França, Tailândia - 2021 - 2h 16min
Avaliação:
*****
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