Uma pérola do cinema independente norte-americano. De tamanha riqueza sócio-cultural e simbólica que é um absurdo eu conhecer esta obra só agora. Se Jordan Peele não se inspirou neste filme para fazer “Corra”, foi uma baita duma coincidência.
To Sleep With Anger é um filme sobre os traumas da negritude e da escravidão, sobre as algemas que o passado impõe, em como não somos tão autônomos e donos de nossas próprias decisões como acreditamos ser, estando sob o controle dos processos que nos subjetivam, assim como dos processos irracionais do inconsciente, manifestados no filme sobre o significante do misticismo, das tradições da magia negra, da superstição e da religião.
Harry é o símbolo do passado violento, dos eventos traumáticos, da volta dos que não foram - processos que estão a todo instante sendo conjurados por nossos mecanismos de defesa, mas que uma hora irrompem. Harry é a manifestação física desse passado incrustado na alma, esse substrato tóxico da psiquê, que irrompe, no início, de forma disfarçada, fingindo não ser o que é, ganhando espaço, até chegar ao domínio total. A narrativa nos conduz a essa interpretação de Harry como metáfora para as forças do passado quando, ao retornar depois de um tempo sumido, traz de volta, também, todos os amigos dos tempos antigos, de longa data, uma multidão de idosos que representam o passar do tempo e a presença do tempo na corporalidade. O passado, definitivamente, voltou.
Harry atua simbolicamente em duas instâncias chaves:
- Racial: este passado é o passado da condição negra norte-americana, dos trabalhos forçados, da imigração forçada, dos tempos de segregação. Isso parece ser enunciado pelo filme quando Harry leva o “pai” para ver os trilhos de trem trabalhados pelos negros, num plano onde o “pai” rememora o trabalho e então adoece. A questão racial também vem a tona em outras ocasiões, seja em anedotas -“piadas de gente com cor” - seja no contraste entre os feitiços performados por Harry e a presença da igreja, da reza cristã, do pastor; seja na contraposição entre a música gospel e o blues. Etc.
- Universal: este passado não necessariamente se restringe a condição do negro, mas pode ser extrapolado como uma relação universal entre o humano e seu passado, onde as cicatrizes continuam abertas, onde somos condicionados pelo que nos aconteceu.
E como conseguimos superar este momento de crise, quando o passado parece irromper com força total, determinando nossas ações no presente, nos tornando escravos de nossos traumas? O filme parece nos indicar que é através do amor, simbolizado na figura da mãe, naquela cena chave onde ela segura a lâmina da faca, sacrificando-se para apartar a briga dos irmãos. A mãe é quem consegue reaproximar os irmãos através de seu sacrifício - através de seu amor incondicional.
E está na relação mãe-Harry o significado para a última cena, a do menino e o trompete. Ao vencer Harry, a familia se une. Se não fosse Harry, os irmãos nao teriam se conciliado, nem Baby brother estaria reintegrado no seio familiar. E aqui temos uma ambiguidade bizarra, porque durante todo o filme, Harry manda mensagens enigmáticas que dão a entender que ele tem um desígnio, seja lá ele qual for, mas que aparenta ser o que nao é. Lembremos daquela frase de Harry sobre o menino do trompete: “se ele parar de tocar, ninguém mais será incomodado. Mas se ele continuar, ele vai se aperfeiçoar”. Portanto: o processo é dolorido, mas o destino final é a “perfeição”. E entendo assim a última cena: o menino consegue dominar o instrumento, assim que a família sai de casa e deixa Harry sozinho estendido no chão, morto. Bem ou mal, por meio do Harry, e do amor, a família se uniu.
Mas não esqueçamos: o corpo de Harry continua presente, estendido sobre o chão da cozinha, podendo ressuscitar a qualquer momento.
Não Durma Nervoso (To Sleep with Anger)
EUA - 1990 - 1h 42min
Direção e Roteiro: Charles Burnett
Avaliação:
****
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