Weekend (1967) - Crítica
- João Marcos Albuquerque
- 1 de abr.
- 5 min de leitura
Atualizado: 6 de abr.
O FILME QUE MATOU O CINEMA
Weekend começa como uma comédia ácida sobre o tédio da burguesia francesa, mas logo se transforma em um delírio apocalíptico, onde a estrada para o interior do país vira também uma travessia rumo ao colapso moral e político do Ocidente.
O filme segue um casal mimado e cruel em busca de uma herança, mas o que parece apenas mais uma sátira de costumes se transmuta em uma crítica feroz — e cada vez mais radical — ao capitalismo, ao imperialismo, e à própria linguagem cinematográfica.
A ironia inicial, que ridiculariza a classe média e seus rituais mesquinhos, vai sendo lentamente substituída por uma espécie de sadismo performático - tenho a impressão de conhecer, talvez pela primeira vez neste filme, um Godard sádico (há um estupro realizado com a crueldade da indiferença do fora de campo; há o assassinato frontal de animais). A violência que emerge choca pela frieza com que é tratada. É preciso acessar a dimensão política desse sadismo. Godard ri do horror, e o riso se envenena: o cômico se torna incômodo, o grotesco se instala como linguagem. O famoso plano-sequência do engarrafamento é emblemático: um balé absurdo de buzinas e gritos, onde o cotidiano da sociedade de consumo se mostra em estado de decomposição.
Na medida em que o casal avança rumo ao campo, a farsa se converte em fábula revolucionária. O filme mergulha numa selva simbólica, onde convivem figuras históricas, canibais marxistas, guerrilhas e filósofos. A trajetória geográfica — da cidade para o campo, da estrada para a floresta — espelha um percurso ideológico: da crítica social pontual à denúncia de um sistema global.
Cores vibrantes, enquadramentos instáveis, colagens sonoras, textos na tela. Confundir para expressar, ou se expressar para confundir - é aí que reside a força de Weekend: não oferecer um discurso palatável, mas tensionar a linguagem até que ela se contamine com a mesma violência que denuncia. O cinema, como a sociedade que retrata, também entra em colapso, e Godard o encena com prazer incendiário.
Godard sabota deliberadamente as convenções narrativas, formais e ideológicas do cinema. O filme começa com um objetivo claro (o casal indo buscar uma herança), mas a partir de certo ponto a narrativa se desintegra completamente. Personagens surgem e desaparecem, os acontecimentos deixam de obedecer à lógica de causa e efeito, e o tempo se torna errático. Não há mais progresso dramático — há dispersão, repetição.
Longos planos antinarrativos, como o do engarrafamento, que dura quase 10 minutos, não levam “a lugar nenhum”, senão à exaustão do olhar - e claro, nos fazendo rir enquanto acompanhamos a marcha de um absurdo tão familiar, e percebemos o comentário metanarrativo de Godard: a troça que ele faz da estrutura temporal e narrativa industrial, pois que não só esta cena, mas todo o filme recusa o ritmo, a progressão e a estrutura que o público foi domesticado a esperar. Esse olhar exausto, perdido, acostumado com outra lógica espacial, temporal e narrativa, faz surgir o pesadelo burguês: o deslocamento no espectador da imersão passional para a fabulação crítica. Um despertar em meio aos destroços.
E assim, Godard coloca o cinema como parte do sistema que critica. Ao desnudar e denunciar suas próprias ferramentas, Godard também está dizendo que o cinema, mesmo o moderno e crítico, corre o risco de ser cooptado pelo espetáculo burguês. Ele realiza em Weekend uma forma de suicídio simbólico: Godard coloca em crise o próprio meio em que trabalha, num gesto profundamente político e estético, irônico e sádico (mas nunca masoquista). Godard parece abandonar de vez qualquer tentativa de se comunicar com o público dentro dos contratos estabelecidos entre filme e espectador. Não se trata apenas de rejeitar o modelo clássico (como ele já vinha fazendo desde sempre em algum grau), mas de implodir toda ponte erguida entre espectador e obra, transformando o filme em uma espécie de manifesto destrutivo, anárquico, contra o próprio ato de filmar como representação cultural assimilável - Weekend é um filme-molotov.
Todo filme propõe ao espectador uma forma de ler, interpretar e sentir o que será mostrado. Todo filme, portanto, estabelece um contrato com o espectador, que participa desse pacto mesmo sem perceber. No cinema clássico de Hollywood, por exemplo, o pacto é de transparência e coerência causal: a história se desenrola logicamente, o tempo é linear, o espaço é contínuo. Já no cinema moderno, o pacto pode ser de desconforto, ambiguidade, ruptura, e o espectador precisa se reorientar diante de um filme que questiona ou desfaz seus contratos anteriores, estabelecendo novos contratos. Ano Passado em Marienbad ou Jeanne Dielman, por exemplo, quebram o pacto narrativo tradicional e criam outro, que exige atenção à forma, ao tempo morto, ao ritmo interior das imagens. Então, qual é o pacto que se estabelece com Weekend?
Nenhum. Isso é possível? Godard nos faz crer que sim. Ou talvez o pacto seja: não haverá contrato. Weekend é um suicídio simbólico justamente por parecer rejeitar a escritura de um contrato. Vivemos em um Estado de Direito, fundado sobre um contrato social: um conjunto de leis e normas que regulam a convivência, estabelecem direitos e deveres, e garantem, em tese, previsibilidade e justiça. O Estado de Direito é um sistema de regras, expectativas e contratos (simbólicos e literais) que organizam as relações sociais. O pacto fílmico funciona de modo semelhante: é o que estrutura a relação entre o filme e o espectador, criando regras internas de funcionamento, definindo o que pode ou não acontecer dentro daquele universo narrativo. Ao negar a possibilidade de um contrato, Godard está criando uma ruptura na confiança que sustenta a legitimidade do sistema (cinematográfico e sociopolítico). Em Weekend o pacto - social e cinematográfico - se rompe. Ao fazer isso, Godard passa a fazer filmes politicamente, e não mais a produzir filmes políticos. Ao quebrar o contrato e não o substituir por outro, Godard liberta o espectador e o cinema.
Seu suicídio simbólico é essa sua recusa de qualquer mediação com o sistema cinematográfico como um todo — mercado, festivais, crítica, recepção. Ele rompe com a linguagem, mas também com a função do cinema como obra de arte, como veículo de sentido negociável.
Isso me remonta à hipótese da ditadura do proletariado, no marxismo clássico, como uma fase de transição. Para que o comunismo (sociedade sem Estado, sem classes) surja, essa ditadura, quando instalada, precisa abrir mão do próprio poder — o que se interpreta como um suicídio necessário do aparato estatal revolucionário. Essa é uma das maiores tensões no pensamento marxista: como um Estado pode matar a si mesmo? Godard ensaia uma resposta em seus próprios termos, no seu terreno, fazendo a sua revolução.
E é irônico pensar que o excesso de signos, de cenas desconectadas, de personagens que falam com o público, de slogans políticos e referências literárias forma uma massa caótica e agressiva que chega a rejeitar a própria ideia de estilo autoral - ele a radicaliza tanto que acaba por a transformar em campo de conflito e ruína. Weekend é um filme que carrega a marca autoral com tanta força que ela se torna autodestrutiva: é o autor que, por saber demais, decide desmontar a própria máquina que o consagrou. Godard está se matando como autor, como cineasta ainda vinculado à Nouvelle Vague, à cinefilia, à crítica. Logo após Weekend, ele funda o Grupo Dziga Vertov.
Weekend é o luto do cinema como forma institucional, comunicacional, assimilável. É a recusa do cinema enquanto meio domesticado de expressão, um cinema que se organiza para ser entendido, consumido, absorvido, interpretado, e eventualmente neutralizado. É uma implosão absolutamente consciente de sua função histórica: encerrar um ciclo para abrir outro.
Ao fim do filme, o mundo está em ruínas, mas ninguém chora — só restam os gritos, as citações, os ecos de uma civilização que se devorou a si mesma. Do cinema até então, não sobra nada, com exceção de Godard.
P.S: Não sei quantas vezes Godard se matou antes de 2022, mas Weekend foi seu primeiro suicídio.
"Tornar-se imortal... e depois morrer" ("Se rendre immortel... et puis mourir") - O Acossado (À bout de souffle, 1960) – Jean-Luc Godard
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