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Speak No Evil (2022)

Foto do escritor: João Marcos AlbuquerqueJoão Marcos Albuquerque

Atualizado: 6 de out. de 2022

Você percebe que tem algo esquisito. Que não é apenas uma questão de diferença cultural entre os casais. Parece haver um casal que age corretamente, enquanto o outro não. Mas fica uma dúvida no ar. Uma dúvida que vai e volta ao longo do filme. Quando estamos prestes a ter alguma certeza, ela volta. A direção é muito hábil na sustentação desse clima de incerteza.


O que mantém esse suspense é a excelente construção dos personagens, assim como a dinâmica estabelecida entre eles, em especial os dois que formam o casal dinamarquês. Eles estão o tempo todo tentando entender e relativizar o que está acontecendo, e são tolerantes com certos atos constrangedores e inadequados do casal holandês. Quando um casal desconfia, o outro trabalha para diluir a insegurança.


Há um conflito que se desdobra como uma dança entre os quatro personagens, uma coreografia oculta que mantém o suspense em andamento. Mas, como em toda dança, há o condutor e o conduzido. Só descobrimos quem é quem na conclusão, apesar das pistas ao longo do caminho. Melhor seria, contudo, se a dança continuasse, extendendo-se para além do término do filme.


Essa dança é o coração do filme. Na coreografia, há idas e vindas, gestos de afastamento e de aproximação, de rompimento e conciliação. Tudo a altíssima velocidade, diga-se de passagem. E muito bem conduzido por uma narrativa que consegue, sabiamente, inserir o cômico nos momentos de incredulidade, dando lastro a decisões que, se não fosse por essa rara habilidade, não convenceriam os espectadores.


Foquei na analogia com a dança por conta de uma cena que considero chave no filme, a cena em que o casal holandês dança e se agarra sem pudor, enquanto o casal dinamarquês tenta simular o que está presenciando. O casal dinamarquês está nitidamente constrangido, e falhando miseravelmente na tentativa de simular o casal holandês. Mesmo assim estão lá, contra a própria vontade, mas lutando para sentir a mesma vontade, o que, naturalmente, gera uma cena tão constrangedora que até eu, em meu sofá, senti-me constrangido por eles. Essa cena é uma síntese do posicionamento deles ao longo de todo o filme: deslocados, constrangidos, incomodados, envergonhados, mas de pé, tentando dançar de acordo com a música.


Me pergunto se a língua cortada das crianças é apenas uma forma literal de calar elas, ou se tem algo ali que remete a ordem do cultural. A língua falada, afinal, é um marcador cultural. A língua diz de onde somos, de o de viemos. Ao cortar a língua, parece haver a insinuação de que se cortam as diferenças culturais - se corta o elo com o lugar de onde somos, para sermos agora de lugar nenhum. Esta analogia me vem à cabeça pela importância que a comunicação verbal assume em toda a narrativa. Há insinuações, sugestões, mensagens cujo significado permanece inconclusivo, incompreendido, ambíguo, enfim, toda uma gama de interações comunicacionais que mantém o suspense aceso. A comunicação é parte fundamental dessa dança.


Dança que termina de forma abrupta, crua e cruel. Como se, do nada, a música cessasse de tocar. O final da obra destoa de todo desenvolvimento antecedente, não tem a sofisticação nem as nuances dos diálogos bem construídos e dos comportamentos e atitudes ambíguas. É uma conclusão que acaba por abrir uma caixa de Pandora, já que, ao saber das atividades do casal holandês, indagamos como eles conseguem continuar na ativa, como o plano deles continua dando certo, depois de tudo que já fizeram, e daí por diante. A vontade de chocar os espectadores se sobressai, e acaba por tornar um filme até então inteligente e labiríntico numa experiência bruta e unidimensional. Todo fluxo bem concatenado de drama psicológico desemboca num ponto inflexível, fechado, e por isso mesmo, pobre. Os próprios roteiristas, em determinada entrevista, dizem que um de seus desejos eram o de fazer o filme mais chocante da cinematografia dinamarquesa. Nada contra a vontade de chocar, nem mesmo contra o choque pelo choque - costumo valorizar o choque pelo simples valor intrínseco que ele carrega, o valor de nos tirar do conforto, de nos atingir profundamente, de quebrar regras e convenções etc. Mas não é isso que ocorre aqui. O choque, em Speak No Evil, se não vem completamente desacompanhado das qualidades citadas na última frase - não há como negar a brutalidade dos atos e seus efeitos sob os espectadores - vem em desarmonia com a proposta formal e narrativa.


Speak No Evil

Direção - Christian Tafdrup

Roteiro - Christian Tafdrup e Mads Tafdrup

Dinamarca e Holanda - 2022 - 1h 37min


Avaliação:

3,5/5

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