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Foto do escritorJoão Marcos Albuquerque

Estranho Caminho - Crítica

Desde os primeiros anos do cinema, ainda na década de 1920, cineastas buscaram representar o invisível: o que se passa em nossa mente, em nossos sonhos e pesadelos, em nosso mundo interior, estados de espírito, delírios e alucinações. Os primeiros filmes a tentar materializar o imaterial receberam a alcunha de vanguardistas (avant-garde), e com o passar do tempo começamos a chamá-los de cinema experimental. Refiro-me em especial aos cinemas que ficaram conhecidos como Impressionismo Francês, Surrealismo, Expressionismo Alemão, e alguns outros filmes pontuais que resistiram ao teste do tempo, como o brasileiro “Limite”, de Mário Peixoto, e o japonês “Uma Página de Loucura”, de Teinosuke Kinugasa.

 

De lá pra cá o cinema passou por diversas transformações. Mas a transformação de nosso mundo interior em imagem na tela continua sendo um dos grandes mistérios a desafiar os cineastas. A magia do novo filme de Guto Parente se dá nesse ponto: no encontro do mundo interior do personagem com o mundo exterior da imagem, em como Guto nos imerge na subjetividade de seu personagem a partir da matéria sensível que constitui a realidade objetiva. Em suma: não há demarcação explícita, na imagem, entre os dois mundos (interno e externo). Não sabemos quando há a transgressão das fronteiras entre o real e a fantasia. E isso é ponto central na condução narrativa e estética da obra.

 

Há, bem no início do filme, uma exceção que comprova a regra: o primeiro sonho. Neste momento, Guto se utiliza de elementos associados ao cinema experimental, como a superimposição de imagens, para criar o sonho. Quando o protagonista acorda, sabemos que estava a sonhar. Ao mesmo tempo, Guto brinca com os espectadores, ao apontar, logo na primeira cena, como o filme vai representar e diferenciar sonho de realidade. Ao final do filme, percebemos como fomos manipulados a acreditar na ilusão como realidade (eis a constituição per se do cinema, não é mesmo?), e essa delimitação inicial (e enganosa) da diferenciação entre fantasia e realidade é crucial. Pois, ao longo do filme, até o momento em que o protagonista descobre o falecimento de seu pai, como já salientei acima, não haverá distinção clara, através de elementos da linguagem, entre sonho e realidade. Haverá, contudo, indícios, sugestões e intrusões que abalam nosso senso de normalidade, sem haver uma ruptura entre os dois mundos.

 

Aliás, o filme é pontuado por estas indicações que abalam nossa crença na realidade, causando estranhamento. É a intrusão, ao longo do filme, de diversas situações que fogem da normalidade: o pai parado em frente ao computador, sem responder aos chamados efusivos do filho; o saxofonista que passa flutuando pela rua; o abraço apertado entre pai e filho, onde o patriarca despeja mil palavras em um segundo. São situações esquisitas, ainda que plausíveis, representadas num registro realista. Mas há algo de estranho nelas. Há também a irrupção de sons extradiegéticos quando o filho se depara com o apartamento do pai, ainda na primeira metade do filme, indicando uma possível contaminação de um mundo no outro. E é por isso que, ao final do filme, quando temos e grande revelação, algo em nós já dizia que aquele pai poderia ser fruto da imaginação. Guto vai preparando o terreno, gradualmente.

 

Verdade é que desde o início do filme o protagonista enxerga aquilo que parece não existir, mas que se apresenta como real (me refiro, especialmente, a visão do pai carregando pela rua escura uma espécie de porta num carrinho de supermercado). A recorrente aparição do pai para o protagonista nos indica haver uma obsessão, por parte do filho, com a figura paterna. Essa obsessão, junto com o primeiro sonho, nos transportam para a mente do protagonista: vimos seu sonho, e agora sua obsessão pelo pai. O filme nos convida, portanto, desde a primeira cena, para o interior de seu protagonista.

 

Ainda no início do filme, e dessa vez através de uma modulação sutil no áudio, Guto nos convoca mais uma vez para adentrarmos a subjetividade de seu protagonista. Quando ele entra no quarto de hotel recém alugado e desperta sua atenção para o som da geladeira. Ao focarmos nossa atenção em determinado objeto, ele se destaca perante o restante - passamos a perceber o objeto com mais intensidade, e se ele emite algum ruído, por menor que seja, esse ruído preenche toda nossa percepção, agora aguçada. É o que acontece com o som da geladeira, que passa a incomodar o protagonista a ponto de ele desligar o eletrodoméstico. Adentramos a subjetividade do protagonista conforme o som da geladeira aumenta de volume. Essa é uma forma sofisticada de compartilharmos da atenção do personagem. São estas incursões e modulações sutis no registro objetivo da realidade que vão criando, pouco a pouco, o onirismo do filme.

 

As transições suaves da montagem, onde uma imagem se dissolve na outra (cross-fade), atuam na confecção do onirismo, ao fundir uma imagem na outra, convocando os espectadores a confabularem sobre as implicações destas imagens sobrepostas. Além da beleza plástica e poética das transições, esta técnica remete ao cinema impressionista de Jean Epstein, ao cinema experimental de um Kenneth Anger – ambos artistas reconhecidos pelo onirismo de seus trabalhos.

 

Outra característica formal que nos conduz para um espaço onírico são os movimentos suaves da câmera para frente e para trás, as vezes usando o zoom in e zoom out. Estes movimentos nos colocam, na posição de espectadores, como que deslizando pelo espaço, dando uma sensação de flutuação. O cinema de Tarkovski tem como marca este deslizamento contínuo e quase que imperceptível da câmera, onde o pesado aparato tecnológico (a câmera) parece adquirir uma leveza metafísica. Essa é uma das características formais do cinema do mestre russo que, junto com tantas outras, nos fazem considerá-lo um cineasta do onírico.

 

Em Estranho Caminho, o onirismo destaca dois aspectos que o diferenciam de outras obras que abordam temas semelhantes, como a pandemia e o luto.

 

O primeiro ponto é que Estranho Caminho é um dos poucos filmes (se não for o único – ao menos não me recordo) a abordar a pandemia da Covid-19 sob uma atmosfera onírica. A covid-19, o isolamento social, todo o cenário pandêmico - há algo mais surreal e ainda assim mais concreto do que toda essa situação absurda pela qual passamos? A representação onírica da pandemia ressalta o caráter fantasioso e ficcional do real, essa contaminação dos mundos como que sendo uma constituinte essencial de nossa existência e experiência da realidade.

 

O segundo ponto: o onírico só se apresenta como alucinação de fato no desfecho, quando o protagonista percebe que estava sonhando acordado. E daí o onírico adquire sua máxima potência poética: o sonho era um estranho caminho para lidar com o luto. Quem já perdeu um ente querido deseja intensamente esse reencontro impossível, que só pode ocorrer no mundo dos sonhos. E no mundo do cinema.

 

Daí o flerte do filme com o experimentalismo. Se lembra do primeiro parágrafo desse texto? Guto faz uma homenagem aos desbravadores do mundo interior, da subjetividade e do onírico no cinema ao trazer traços experimentais em breves momentos de exposição, que em nada buscam experimentar com a linguagem cinematográfica, mas apenas lembrar daqueles que, antes de partir, abriram as portas do cinema para o mundo dos sonhos.

 

Outro flerte que não pode passar em branco é com o gênero horror. Afinal, quando falamos da interioridade dos indivíduos, falamos de sonhos e pesadelos. O gênero horror sempre foi essa manifestação cinematográfica do medo. E o luto é uma forma implacável de lidar com o maior dos medos: o medo da ausência/morte. É no luto que a ausência se manifesta como onipresença, e é aqui que o morto se converte em fantasma. Aqueles que partiram nunca nos deixaram – eles irão, para sempre, nos assombrar. E cabe a nós aprendermos a viver com nossos fantasmas. O cinema, nesse processo, pode nos ajudar.

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