O Onírico no Cinema
- João Marcos Albuquerque

- 7 de ago.
- 3 min de leitura
Já nas primeiras décadas do cinema, cineastas buscaram formas de tornar visível aquilo que não tem forma: o inconsciente, a memória, o desejo, a culpa, a fantasia, o medo. Para expressar o que se passa em nosso mundo interior, estes cineastas de vanguarda experimentaram com a linguagem cinematográfica, e assim abriram as portas para o que podemos chamar de cinema onírico.
Podemos pensar o onírico como tudo aquilo que remete ao universo dos sonhos, não apenas no sentido literal de sonhar durante o sono, mas também como uma experiência de realidade distorcida, subjetiva e instável. No cinema, o onírico pode se manifestar de diversas formas: quando a narrativa segue por associações livres, como nos sonhos, memória ou imaginação; quando as imagens ganham texturas irreais, insólitas ou simbólicas; quando os acontecimentos se movem entre o real e o imaginado sem fronteiras nítidas etc.
A seguir elaboro um breve panorama do onírico na história do cinema, destacando alguns de meus filmes oníricos favoritos, salientando os usos e efeitos criados por cada cineasta.
O Cão Andaluz (1929)
Entre os primeiros e mais emblemáticos exemplos de cinema onírico está O Cão Andaluz, de Luis Buñuel e Salvador Dalí. Inspirado diretamente pela lógica fragmentada dos sonhos, o filme rompe com a narrativa linear e com a causalidade tradicional, apresentando imagens que se sucedem por associações livres e choques visuais, mais próximas do inconsciente do que da realidade objetiva. É o sonho transposto para a tela, em que a força das imagens vale mais que qualquer coerência narrativa, antecipando o potencial do cinema como expressão do imaginário e do surreal.

Tramas do Entardecer (1943)
Em Tramas do Entardecer, Maya Deren constrói um pesadelo doméstico: uma mulher atravessa os mesmos espaços, vê as mesmas figuras e objetos, é perseguida pela repetição. A casa, lugar do íntimo, torna-se prisão. A imagem onírica aqui é a própria representação sensível de uma condição: o aprisionamento feminino na esfera privada, no casamento, na rotina. O sonho é denúncia.

Fireworks (1947)e Scorpio Rising (1963)
Kenneth Anger, em filmes como Fireworks e Scorpio Rising, também explora o onírico, mas agora como linguagem de uma subjetividade dissidente. Seus filmes colapsam erotismo, violência, mitologia pop e símbolos religiosos para criar visões que expressam o desejo homossexual em meio à repressão. O onírico é aqui um espaço de fuga, mas também de confronto: um teatro sensorial onde o inconsciente queer se projeta em delírios visuais e sonoros.

O Espelho (1975)
Em O Espelho, Andrei Tarkovski dissolve as fronteiras entre sonho, memória e realidade. Suas imagens poéticas, atravessadas por fogo, água e vento, compõem um fluxo meditativo sobre a vida, o tempo e a morte. O onírico aqui não é uma ruptura da realidade, mas sua revelação mais profunda. Para Tarkovski, o real não se limita ao visível, mas inclui o território íntimo das lembranças, intuições e visões interiores. O Espelho nos coloca diante de uma realidade ampliada.

Kagero-za (1981)
Seijun Suzuki constrói, em Kagero-za, uma narrativa em que o limite entre realidade e fantasia se dissolve a cada cena, mergulhando o espectador num estado de estranhamento contínuo. O filme trabalha com uma montagem descontínua que desorienta o espectador brutalmente. Ao embaralhar o real e o imaginário sem oferecer pontos de ancoragem, Suzuki cria uma experiência essencialmente onírica, em que o sentido se constrói na sensação.

Cidade dos Sonhos (2001)
Em Cidade dos Sonhos, David Lynch utiliza a lógica do sonho para encenar o trauma. Na primeira metade do filme, acompanhamos um romance idealizado entre duas mulheres em Los Angeles - até que a abertura da caixa azul desestabiliza tudo. Descobrimos que aquele mundo pode ser uma construção psíquica da protagonista, uma tentativa de reescrever a dor de suas ações. O sonho, nesse caso, é mecanismo de defesa, reconfiguração simbólica do real. Mas o real, como sempre em Lynch, retorna, e cobra seu preço.

Mal dos Trópicos (2004)
Mal dos Trópicos, de Apichatpong Weerasethakul, propõe uma bifurcação onírica. A primeira metade do filme apresenta um amor silencioso e impossível entre dois homens; a segunda, ambientada na floresta, encena um mundo mítico, onde homem e animal se fundem, e o desejo encontra expressão simbólica. O sonho aqui é linguagem ancestral, uma maneira de dizer o que o cotidiano não permite. A repetição liga os dois mundos (as duas metades), e o tempo onírico se sobrepõe ao tempo da “realidade”.

O cinema onírico, portanto, não se limita a representar sonhos, muito pelo contrário: ele se comporta como um sonho, cria mundos que seguem a “lógica” de um sonho. E ao fazer isso, nos aproxima de tudo aquilo que não sabemos nomear, mas reconhecemos com o corpo: o desejo, a perda, a culpa, o amor, o medo.





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